sábado, 25 de abril de 2015

Às mulheres dos meus companheiros*, ou o que eu posso dizer sobre não-monogamia

É difícil precisar um momento no qual as coisas atingem um significado mais profundo. Tanto tem que ser considerado para isso, nossas vivências, lugar de fala, nossa história. Eu demorei mais de 15 anos para chegar a este texto, a conseguir ver essas ideias da forma que vejo hoje. E absolutamente nada garante que aqui você encontre a resposta que procura. Mas chegou a hora de eu dizer a minha meia dúzia de palavras sobre a não-monogamia.

Como falar sobre não-monogamia para mulheres? Como falar sobre não-monogamia para mulheres que não se encaixam no padrão cis, hetero, magro, branco, classe média (ou alta), neurotípicas, ou seja, para a grande maioria de nós, mulheres, que sofremos opressões doloridas e pesadas diariamente por sermos mulheres, mas também por não sermos as mulheres possíveis, as mulheres que a sociedade prega como ideais? A resposta para isso passa pelo mesmo caminho que passa a resposta à pergunta: como falamos sobre relacionamentos para mulheres às quais a monogamia é negada?

O triplo suporte da monogamia

Quero começar defendendo aqui uma premissa fundamental para que você entenda como desenvolvi estes pensamentos: a monogamia não existe. No entanto, em sua inexistência, ela forja toda a vida, cultura, ideologia e rede de significados da existência das mulheres na nossa sociedade.

Que estejamos questionando cada vez mais isso, não interfere (ainda) tão significativamente no fato que há uma rede ideológica que nos constrói enquanto seres ao redor da máxima: encontrar o príncipe encantado. Além do fato óbvio que o príncipe encantado não existe, o problema da teoria do príncipe encantado é que dela deriva a necessidade de você ser uma "princesa". Princesas, é claro, que são cis, brancas, heteros, ricas e tudo aquilo que nós já sabemos. E que provavelmente você não é. Certamente, eu não sou.

Sem querer me aprofundar na criação do amor romântico como elemento fundamental para sustentação do sistema e na mitologia e literatura desenvolvida a partir desta necessidade, porque realmente há muito a ser dito, quero falar um pouco sobre a que serve essa ideia, que é a submissão identitária da mulher ao homem e à existência deste amor (ou a não-existência).

O que isso quer dizer? Quer dizer que sim, ainda construímos nossa vida de forma a colocar a busca pelo amor romântico, o príncipe e etc a cima de toda e qualquer outra questão. Em que pese que há muitas mulheres que conseguem desenvolver carreiras incríveis em diferentes áreas apesar disso e também que há mulheres que tem que sair de casa pra trabalhar em sub-empregos para sobreviver, o imaginário ainda está voltado para essa busca. É só ver as músicas, filmes, novelas, toda produção cultural se trata de relacionamentos afetivos-sexuais, de idealização de parceiro, de busca e de sofrimento (desde Pablo até qualquer estrela pop internacional, passando pela ópera ou por bandas cults que provavelmente jamais vou conhecer, diferentes meios para a mesma mensagem).

E o que acontece quando temos como objetivo maior, pairando sobre todos os outros, encontrar um par romântico? Nos tornamos vulneráveis. Guarde esta ideia porque a ideia central de toda essa discussão é isso: a vulnerabilidade social, econômica, política, emocional, psíquica das mulheres. Nos tornamos vulneráveis porque a ideia original deste "projeto monogamia" era garantir que a mulher estivesse "presa" ao lar e ao marido como forma de garantir a manutenção dos bens na mesma família. "Mas e eu que não tenho bens?"- perguntamos eu, você e a grande maioria das mulheres, muitas vezes achando que essa versão da história não nos representa. Pois bem, temos que lembrar que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Mesmo que os detentores de meio de produção, os capitalistas, os ricos, chame como quiser, sejam a minoria, nossos ideais, valores e anseios advém dos ideais valores e anseios deles e para eles. Exemplo extra relacionamento: funcionário achar que tem que trabalhar mais que seu horário, pra além de sua função e etc. Pra que? Ele vai ganhar mais ou viver melhor? Não! Pra garantir o lucro do patrão. Sim, olhando de forma tão clara parece que não faz sentido, mas é assim que as coisas funcionam.

O que me leva ao terceiro ponto e mais difícil de olhar de frente: no pano de fundo de toda essas histórias mal contadas, desses sonhos e ilusões há uma mensagem que é esculpida muito profundamente na nossa alma, a de que precisamos de um homem pra sobreviver. Não estou falando viver, estou falando sobreviver. Que precisamos de um marido para prover sustento, moradia, segurança, etc. Não à toa que existe a teoria do "bom partido", o homem que tem bom emprego, "boa família", e mais uma série de valores agregados que se pararmos pra pensar de verdade torna toda a ideia absolutamente pavorosa.

Cabe aqui uma problematização: é claro que descendo a escala sócio-econômica encontramos uma diferença material objetiva. É muito mais comum casas chefiadas por mulheres e muito mais comum homens que não trabalham e são sustentados pelas mulheres. Sabido também que estes homens não se ocupam, na maioria das vezes, dos afazeres domésticos,não havendo uma inversão de valores, somente uma configuração diferente para o mesmo problema que é o fato de que as mulheres vão dar de tudo para ter e para manter um relacionamento. Inclusive se sujeitar a condições de trabalho terríveis para sustentar não somente a si, o que seria ruim, mas para sustentar também um homem que em contrapartida factualmente não oferece nada. Mas emocionalmente, ideologicamente oferece, oferece legitimação social. Porque afinal, a vida pode ser muito difícil mas, "pelo menos eu sou casada",

A monogamia não existe

Eu adoro ver certos canais de TV absolutamente sexistas que são "voltados ao público feminino". Passo horas no pinterest vendo coisas de casamento. Sonho secretamente em ser uma dessas pessoas que recebe pedidos de casamento que viralizam na internet. Sim, estou falando de mim mesma, Bruna, não-monogâmica. Ter consciência de todas essas coisas que escrevo, e ter feito as opções de vida que fiz não construíram ao redor de mim uma bolha inatingível onde nenhuma ideologia da sociedade me afeta. Longe disso!

E o principal motivo pelo qual eu sonho com um pedido de casamento é que o direito à monogamia me foi negado. Por eu ser gorda (mesmo), por eu ser bissexual, por eu não ter um diploma universitário, por ser de origem classe média baixa, por não ter onde cair morta, por não ser neurotípica. Todos os dias eu olho para o mundo e sei que não sou a princesa, que não sou uma dessas mocinhas por quem os homens vão morrer de amor. Sei que não sou digna de ser amada de verdade. Escrever essas palavras cortam meu coração profundamente, mas quero ser o mais clara possível porque essas coisas, elas precisam ser ditas por alguém. E por ser essa pessoa "não amável, não casável" meu nível de vulnerabilidade social é grande, assim como meu nível de vulnerabilidade às opressões: quanto mais opressões somos sujeitas, mais vulneráveis nos tornamos perante o sistema opressor. O que quer dizer que estou mais propensa a vivenciar relacionamentos abusivos, violentos e por aí vai. E, importante dizer, vivenciei quase todos os tipos de relacionamento abusivo que existe ao longo dos meus quase 30 anos de idade. Minha vulnerablidade não é teórica, é real. E as vivências negativas são acumulativas, isso quer dizer que hoje me sinto muito mais vulnerável, "menos sã" e mais propensa a sofrer do que era com 15 anos de idade. Mas vamos deixar um pouco de lado minha história e vamos falar do outro lado...

Existe um número muito muito pequeno de mulheres que são essas mulheres: as casáveis, amáveis... as princesas. Àquelas que têm direito à monogamia. Elas são pedidas em casamento com anéis maravilhosos, casam de branco em lindas festas que me fazem chorar. Essas mulheres que, como as princesas, serão "felizes para sempre". Mas opa, pera aí... existe isso de felizes para sempre? Então, gente, não. Essas poucas mulheres se casam, sim, mas acabam se deparando com a realidade da construção original da monogamia, ou seja, elas são como a Rapunzel, aprisionada numa torre, levadas a eventos sociais, exibidas como uma grande conquista (um lindo objeto decorativo) enquanto seu algoz, o homem, sai livremente pelo mundo sendo efetivamente transando com outras mulheres (normalmente as não-casáveis, negras, gordas, trans, etc) ou exercendo sua possibilidade de fazê-lo, em bares com os amigos, pelas ruas, em todos os espaços que são dos homens, ou seja, todos os espaços públicos. E essa mulher vai achar que se ela cumpriu todos os requisitos para a felicidade (sendo branca, magra, cis, etc), conseguiu "um bom partido" e mesmo assim ela não é feliz, que a culpa é dela. Que ela não é boa o suficiente, não é magra o suficiente, interessante o suficiente, seja lá o que for o suficiente. Porque sempre tem algo que a mais "emprincesada" das mulheres não será o suficiente ou a sociedade a fará achar que não é, porque o modelo de mulher ideal não só não existe como só serve como sistema de opressão e controle das mulheres, não é um modelo possível de ser seguido.

Essa mulher, a que tem direito a monogamia, está sujeita somente a outra forma de opressão, objetificação e prisão. Nada na monogamia é libertador para a mulher. Seu corpo, suas emoções, sua vida fica presa a uma casa, um homem, uma família, um sentimento... a uma ilusão que é materializada por esses elementos concretos. O que é, então, o "direito a monogamia"? É o direito de ser prisioneira de um homem. Porque, vamos aos fatos, a monogamia, como sistema, não existe para os homens! Precisamos parar de nos iludir com isso, na busca da exceção! "Ah, mas fulano não me trai" Pode até ser que ele não te traia, não quer dizer que ele não está sendo beneficiado da mesma forma pelo sistema de opressão mononormativa!Que ele não está vivenciando os espaços coletivos, enquanto você tem que se preocupar com a conta de água. Porque não podemos esquecer que toda a estrutura social é perpassada pelo machismo. Por mais progressista, desconstruído, maravilhoso que seja o marido ele é beneficiado por esse sistema e você não é. Isso se você tiver a sorte de ser uma das "princesas", do contrário, não dá nem pra se iludir que você é, porque SE você conseguiu se casar vai passar o resto da vida agradecendo de joelhos ao homem maravilhoso que te quis apesar de você ser ______ (insira aqui qualquer origem, característica ou elemento que faça você ser oprimida). E disso pra um relacionamento abusivo não é nem um passo, já são os dois pés pra dentro.

A monogamia não é nossa amiga

Chego neste ponto do texto com a vontade de escrever "foda-se, vamos todos morrer mesmo". Porque essa é a sensação que eu tenho sobre tudo isso. Lutando fortemente contra esse sentimento, vou tentar começar a fechar as ideias e dizer porque eu, uma pessoa a qual a monogamia foi negada, não luta por este direito.

Primeiro, eu não vejo sentido em lutarmos para sermos prisioneiras de homens. E lutar pelo direito a monogamia, ao meu ver, é lutar pra isso. Para ser(mos) reconhecida(s) como objeto de luxo, ao invés de só objeto. Pode fazer diferença pro dono ter um objeto ou um objeto de luxo, mas pro objeto, bem, não faz, porque objeto não sente. Por isso eu coloco todas as forças que me restam para lutar pelo que parece aqui óbvio desdobramento deste texto: lutar para que não sejamos objetos. E só alcançaremos a existência total de sujeitas quando tivermos autonomia.

E autonomia não é algo que você compra no mercado e dá pra alguém. Não é uma ideia que eu acordo com ela amanhã e pronto, sou autônoma. Se alguém te dizer isso, pode mandar pra merda. Autonomia tem base material! É impossível construir autonomia quando se é vulnerável socialmente, politicamente, economicamente, e por aí vai.

E digo mais: enquanto não conseguirmos construir autonomia para as mulheres não haverão relacionamentos sem hierarquia. Vamos cortar essa outra ilusão pela raiz, por favor. Esta é uma ideia extremamente opressora para as mulheres, e ainda mais opressora quanto mais vulnerável for a mulher. Dizer que os relacionamentos não ter hierarquia é o mesmo que dizer que é igual você terminar um relacionamento com uma pessoa que você gosta, vê de vez em quando, faz sexo do que terminar um relacionamento com uma mulher que vive com você. No primeiro caso a mulher vai sofrer, claro que vai. No segundo caso a mulher além de sofrer a dor da perda vai sofrer por não saber de vai ter onde morar ou o que comer. Dá pra entender a diferença?

Por isso que eu em todos meus relacionamentos coloco as companheiras co-habitantes dos meus companheiros em primeiro lugar. Isso não é invisibilizar meus sentimentos, meus amores, não é me colocar em segundo plano. É respeitar uma mulher, uma irmã, uma companheira que está numa situação mais vulnerável que eu naquele relacionamento. Porque sim, vulnerabilidade é relativa. Ao mesmo tempo que sou extremamente vulnerável em relação ao companheiro com quem divido a casa, sou muito pouco vulnerável em relação a outro companheiro que vejo poucas vezes por ano. Doeria terminar este segundo relacionamento? Claro que sim, amo este companheiro, de verdade. Mas efetivamente, além de perder a possibilidade de transar com ele, beijar, talvez até a possibilidade de sentar e tomar um cerveja e conversar sobre a vida (que eu acho triste, mas às vezes isso também a gente perde com fim dos relacionamentos), não vou perder nada. Minha vida, meu dia a dia, não vai mudar nada. Vou ficar triste, vai passar. Vida que segue.

Existem relações sem hierarquia? Existem sim, ou relações próximas disso. Em basicamente três casos: adolescentes ou pessoas jovens (que moram com os pais ou são sustentados por eles), pessoas de classe média alta (que não dependem financeiramente de outra pessoa seja por trabalho ou herança), ou relacionamentos não monogâmicos homossexuais (e somente em casos que não hajam outras opressões interseccionadas, ou seja, se todos são brancos, todos tem o mesmo padrão financeiro e etc.) Ou seja, é a exceção da exceção da exceção. E mesmo assim eu tenho lá minhas dúvidas se a não hierarquia é real ou se há uma vontade tão grande de que ela existe que tem pessoas dentro deste relacionamento sendo seriamente oprimidas por esse ideal. Isso acontece, e muito.

Fechando, sobre o que não-monogamia não é

Ao meu ver, dentro do que eu defendo, pra mim, ou seja, quando EU estiver falando de não-monogamia eu não estarei nunca, jamais, em nenhuma hipótese falando de liberdade para homem cis fazer o que eles querem. Não faz sentido algum lutar por algo que já está dado. Sim, eles já fazem o que querem, inclusive em relação a nós, nossos sentimentos e relacionamentos. Não-monogamia não quer dizer, nunca, dar cartão verde pra um homem que você se relaciona ficar com quem ele quiser e da forma que ele quiser. Pelo contrário, não-monogamia pra mim quer dizer, na grande maioria dos casos, negar este direito aos homens, o direito de fazer com as mulheres o que eles bem entendem sem pensar ou se importar de fato com as consequências.

Se trata de homens desconstruindo profundamente o machismo em lugares onde eles não querem ver que são machistas, abrindo a mão de seus privilégios estabelecidos. Se trata de mulheres lutando para tomar o controle de suas vidas, seus corpos, seu sexo, suas vontades, emoções, psique, sentimentos, alma. Do seu ser como um todo.

Se trata de equidade, JAMAIS de igualdade, porque nossa sociedade é obscenamente desigual. E equidade é homem colocando a preocupação com o lar em primeiro lugar. É homem investindo dinheiro, tempo e energia para que sua companheira tenha uma boa formação e um bom emprego. É homem deixando de sair, de beber, de ir pro bar pra que a mulher possa fazer isso. É homem deixando de gastar dinheiro do casal com outras mulheres para que a mulher tenha paz de espírito para viver. É homem respeitando as mulheres, em seus desejos, anseios e sonhos. E é absolutamente e 100% sobre as mulheres e sua libertação.

E sabe o que a não-monogamia é? É uma luta revolucionária! Que não pode caminhar se não for de mãos dadas com o feminismo e com uma transformação radical da sociedade, que para mim é o fim do capitalismo. Porque enquanto houver um sistema de exploração, haverá um sistema de opressão. E, assim como ser socialista, se não monogâmica é nadar contra uma maré que está tentando te afogar o tempo todo. É dedicar a vida a algo que você acredita, mas que sabe que provavelmente não verá para si os louros da vitória, no entanto que você sabe que vale a pena lutar porque a alternativa é ceder e ser objetificada, objetificada e objetificada.

Sempre que falo com mulheres sobre meu sofrimento, sobre a minha dor, sobre o quanto é difícil para mim coisas como saber que meu companheiro com quem co-habito se relaciona com outras mulheres, a resposta das pessoas é: "ah, mas por que você não desiste disso e entra num relacionamento monogâmico?" Este texto é minha resposta. E se resume ao fato de que: 1) a monogamia não existe; 2) a ilusão da sua existência, não me pertence; 3) eu quero ser sujeita da minha vida.

Certamente você deve estar se perguntando o que fazer com tudo isso que eu disse, porque parece levar a um beco sem saída. E leva. Eu estou tendendo a achar que a não-monogamia não é um modelo de relacionamento e não tão só uma escolha política, ela é uma chave de criptografia. Com essa chave você pode desencriptar o código "relacionamentos afetivos-sexuais (na nossa sociedade)". O que você faz com essa chave, é com você. Eu ainda não sei bem o que fazer com a minha, e muito frequentemente mais me corto com ela do que me resolvo. Mas uma vez que se tem a chave ela fica na sua alma e o mundo nunca mais é o mesmo.
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*este texto foi escrito por uma mulher cis para outras mulheres que se relacionam com homens. Ele talvez sirva para mulheres trans e também para algumas pessoas não-binárias designadas mulheres ao nascer, mas certamente não tenho a ambição de abarcar realidade e vivências que não são minhas.

Obs.: esse texto não tenta ser um texto final, provavelmente será modificado com o tempo e certamente não responde nem metade do que eu mesma preciso responder pra mim, mas é uma tentativa de começar. Última atualização 27/04/2015.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Dos prazeres e da danação

Faço parte de uma maioria: das pessoas sexuais. Isso quer dizer que não só gosto de sexo, como gosto muito e que sexo é uma parte bem importante da minha vida. E quando eu falo sexo eu não to só falando papai e mamãe não (aliás, que merda de termo horrível): eu gosto de uma grande variedade de práticas sexuais heterodoxas, fetichistas, não convencionais e várias até mal vistas por grande parte da sociedade.
Faço parte também de um grande grupo oprimido conhecido por mulheres. Sem querer entrar em todos os meandros do que isso significa porque existe todo o feminismo pra explicar isso, isso quer dizer também que são furtados a mim direitos como o prazer, a liberdade, a expressão e também o de auto-reconhecimento como ser humano. Sim, porque historicamente nós mulheres e nossa (não)identidade se construiu não negação do ser humano. Seguindo a dicotomia basal, mulher não é homem, se homem é cidadão, mulher é não-cidadão. Se homem é livre, mulher é prisioneira. Se homem é possuidor, mulher é posse. Se homem é sujeito de prazer, mulheres são objetos. E eu poderia estabelecer mais milhares de relações dessas, mas acredito que essas sejam suficientes para ilustrar o que estou tentando discutir aqui.

Certo, logo de cara vocês poderiam encontrar uma contradição clara no meu texto que invalidaria todo o resto, como posso eu me colocar ao mesmo tempo como ser sexual e como mulher, sendo que estou dizendo que às mulheres é vedado o direito de serem (serem pessoas)? A resposta é simples, ainda que seja infinitamente complexa: porque tamos na luta pra desconstruir isso.

Que ótimo! Estamos desconstruindo isso então automaticamente eu estou livre de sofrer opressão nas minhas relações afetivas, sexuais e amorosas? Óbvio que não!!! O patriarcado é um sistema que incide sobre todos e a dinâmica das relações sociais na sociedade machista, construída sobre o patriarcado é de opressão às mulheres sempre. Não é a algumas, não é às vezes. É pra todas e é sempre. Vamos todos explodir o mundo e começar de novo, então? De preferência, não (não que não seja uma boa ideia). Vamos ser agentes ativos desse processo de desconstrução, mas sempre consciente que isso não evita que as mulheres continuem a ser oprimidas e os homens continuem a ser opressores.

Vamos colocar em termos práticos? Vamos, por favor, sei que é preciso.
Situação 1:
Digamos que eu inicie um diálogo com um homem de nome Sr. X. o Sr. X é um homem (por acaso tb é cis e ht) e ele, como eu, curte BDSM. Eu Sr. X entramos num "jogo de sedução". Estou super interessada no Sr. X e ele parece também interessado em mim. Sr. X. sabe que vivo com meu companheiro e que temos uma relação não monogâmica, mas que ainda assim, dividimos a casa e a vida cotidiana. Marco de sair com Sr. X, no dia um incidente em casa me impede de ir. Sr. X compreende o caso mas a partir dali passa a insinuar que meu companheiro tem uma relação abusiva comigo e começa e transformar isso em parte de sua "brincadeira" sexual. Isso me ofende profundamente pelo amor e respeito que tenho pelo meu companheiro, mas eu estou envolvida com o Sr. X e aceito. Aceito porque eu aprendi, como mulher a aceitar um bando de merda quando se trata de relacionamentos. Aceito porque tenho desejo pelo Sr. X. Enfim. Aceito.

Situação 2:
Conheci num bar o J.A. O cara é super bacana, nosso papo tem tudo a ver, acabamos ficando e transando no mesmo dia, o sexo é incrível, a gente super se entende na cama, me sinto bem com ele. Continuamos a nos falar quase todos os dias. Por encontros e desencontros da vida acabamos por demorar a nos encontrar de novo. Quando nos encontramos o papo continua maravilhoso. Nos beijamos, os beijos são incríveis, o clima fica super sexual e vamos pro motel. Chegando no motel me sinto altamente incomodada e digo que não quero continuar. Me esquivo e tento sair da situação. J.A. conversa pacientemente comigo, voltamos a nos beijar, eu digo que não quero passar disso e acabo cedendo à pressão e transamos. Por mais que ele continue a me tratar super bem e ser um querido saio daquele dia com uma sensação super estranha. Mas continuamos a nos falar como sempre.

Situação 3:
Vivo com F. Por conta do meu trabalho eu viajo muito e isso faz com que, eventualmente, eu e F. não estejamos juntos. F. é um cara muito legal mesmo, a gente tem uma ótima sinergia no dia a dia, na cama, na rua, na chuva, enfim, nosso relacionamento é tudo de ótimo. Numa de minhas viagens estou conversando pela internet com F, tendo uma conversa amorzinho e F. começa a entrar em assuntos relacionados a sexo. Eu desconverso porque não estou no clima (e/ou porque não gosto de falar disso na internet). F. continua na conversa amorzinho mas sempre tentando puxar a conversar para o sexo. Em meio a conversa F. manda uma mensagem dizendo "olha só como vc me deixa" e uma foto de seu pau duro. Eu mando um emoticon de risadinha qualquer e falo qualquer coisa, envergonhada e desconcertada porque eu não estava nem a fim e nem no clima. Digo que estou com sono/ocupada/qqr desculpa e saio da internet. Volto de viagem e transamos loucamente e continuamos a nos amar e viver felizes, eu e F.

Teste simples. O que essas três situações tem em comum?
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São três situações de abuso! E, apesar de não serem situações de fato reais, já passei pelas três (E por taaaantas outras) na vida. Nos três casos estamos falando de uma mulher que gosta de faz sexo. E nos três casos estamos falando de pessoas com as quais ela mantinha relações consensuais. E nos três casos estamos falando de abuso. Pode isso, Arnaldo? Super pode!

Quando estamos numa relação consensual com alguém isso não impede que exista abuso. É chover no molhado, mas a grande maioria de estupros é praticada por namorados, maridos e companheiros das vítimas. Dizer que só porque a pessoa mantém uma relação consensual não há abuso é o mesmo que dizer que essas vítimas não existem. Que marido não estupra. Ou seja, que a partir do momento que você "assinou o contrato" de consenso você está obrigada a aceitar qualquer situação, inclusive o abuso, coação, estupro, assédio (e um longo etc) sem reclamar. Ah, e se não é uma relação consensual padrão também pode ter abuso. Se é um "acordo" não-monogâmico também acontece abuso. Se é um "contrato" BDSM também pode ter abuso. Ou, resumindo, em qualquer relação pode haver abuso. Principalmente em relações entre homens e mulheres (principalmente mas não somente).

Ah, mas ninguém denúncia. Ah, mas como que você vai provar. Ah, mas pode ser mentira. Ah, mas _____ (preencha aqui com qualquer desculpa para o machismo). Legalismos a parte (e não sou contra eles), no mundo real o buraco é mais embaixo. Vá perguntar pras mulheres que foram vítimas de abuso como é tranquilo denunciar. Super fácil. Porque, afinal, existe "delegacia da mulher" então a lei está ao nosso lado. E a delegacia da mulher, assim como os relacionamentos consensuais, está numa bolha fora da realidade onde o machismo não existe. Só que não. Só que nem um pouco. Só que absolutamente o contrário.

Eu, Bruna, não sei como vamos e se vamos um dia ter recursos legais para se lidar com o abuso de fato e nem esse é o centro da minha preocupação. No dia em que a maioria das pessoas perceber que essas e tantas outras situações são abusivas e que as mulheres são MESMO oprimidas (as sexuais, as assexuais, as demissexuais e qualquer outra relação que tenham com sexo) creio que o caminho legal será facilmente trilhado. Mas enquanto denúncias de abuso forem acobertadas por um suposto consentimento, como se este impedisse o abuso, não haverá lei que nos proteja nem estratégia de denúncia que esteja a nosso favor.

domingo, 16 de novembro de 2014

Alcoólicas, em homenagem a Hilda Hilst

Temos um infinito, talvez o próprio.  Por que então a urgência? 
Porque urge de mim um canto de encantamento, uma poesia ritmada. Uma prece prosaica e profana feita de desejo in latência. Feita do que são feitas, também, as asas de fada: suave, certeza, encanto. Feita da minha matéria mais  primordial, aquela que partilho com os astros. Feita de ausências impossíveis. Feita de presença  sensorial (como quando sinto, mesmo em estado ébrio, o exato cheiro teu com café sempre que evoco sua presença virtualmente possível).
Feita com letras de amor verdadeiro e corpo daquela que viveu pra ver. Daquele que viveu e esperou. E viu.  Viu mais e regozijou. E reviu. Tão de perto. Tão sem volta os castanhos nos verdes infinitos. Os corpos derretendo, tremendo e buscando o novo mesmo novo grito. 
(Tão em paz, tão perto do divino, tão profundo,  sereno... ácido. Ecoa) 
Ecoa

domingo, 9 de novembro de 2014

Do próximo encontro...

Que tenham pessoas, ou catracas, ou ruas, ou flores... vejo tudo desaparecendo ao te avistar. Com as pernas trêmulas e os braços enrijecidos, vou caminhar até você tentando medir os paços com a minha respiração. Vou temer, por um segundo, olhar nos teus olhos, mas assim que os nossos se encontrarem sei que terei a coragem suficiente para, enfim, nosso primeiro beijo direto, sem mediações de tempo, de álcool e da timidez. Não que a timidez não esteja lá, mas quando eu penso agora neste momento, a timidez parece ínfima perto do desejo de tocar com os meus os teus lábios. E deste pouso fazer decolagem.

Segurando com força suas duas mãos nas minhas você vai dizer algo, sobre algum lugar e eu vou responder que sim. A verdade é que o onde pouco me importa. (todos nossos onde se transformam em caminhos floridos e inesquecíveis.) E vamos caminhar, evitando nos tocar, ao mesmo tempo que nos desejamos profundamente. (aqui a timidez volta a ganhar espaço)

E sentados em qualquer lugar, perto demais para nos ignorarmos, longe demais para a profusão, trocaremos palavras sem fim. E você me dirá, entredentes: - Bruna, você é exagerada! Vou sorrir, te olhar no fundo dos olhos, piscar uma, talvez duas vezes e te beijar. Te olhando muito, muito de perto, responderei: - Sou, mas não vale à pena? E um beijo selará mais esse entendimento, um beijo intenso, suave, um beijo de quem gostaria que, de fato, tudo ao redor se dissolvesse. 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Por uma estética gorda (pré-manifesto)

A minha pesquisa precisa sair de mim e ganhar o mundo, para entrar em mim, trazendo consigo o mundo. Minha busca, para que não se perca me minhas curvas e dobras, precisa deslizar com o olhar por outras dobras, curvas, cadências, silêncios, vergonhas e também orgulhos. Minha busca, antes de ser minha, tem que ser nossa. Meu corpo, antes de me pertencer, é objeto político, pertence à luta.

Em tropeços poéticos eu clamo pelo eco e por novas vozes. Peço a permissão de olhar e ver seus corpos, suas luzes e sombras, sua escrita. Interessa-me ver-lhe. Teu corpo e meu corpo interessam-se pela liberdade. Conclamo uma dança entre nossas formas, uma dança sem modelos e artistas, uma dança ancestral e despudorada. A dança do ser-mos mulheres gordas.

Cubra-se, mostre-se, vista-se, mergulhe. Inove. Repita. Pinte-se, despinte-se. Brilhe. Mergulhe novamente. Ame, ame-se. Mie, gargalhe, grite. Escreva, escreva em si.



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Pé ante pé, dou o segundo passo para desafiar os cânones (e a gordofobia) e construir um projeto de uma estética gorda. Neste passo eu preciso de você.
Convido todas as mulheres (cis e trans) que tiverem interesse em participar do projeto a virem comigo construir essa ruptura. Vou realizar algumas sessões de fotos durante os próximos meses e estou em busca de pessoas dispostas a serem fotografadas. Não quero modelos, quero verdade, quero pessoas inteiras, não só formas. Quero suas histórias. Quero ir além.

Não existem regras em relação ao tipo de fotos, podem ser com ou sem nudez, sozinha ou acompanhada, sensuais, vulgares, nada sexuais. Cada sessão será combinada diretamente com a participante, levando em consideração a sua identidade, expressão e vontade.

As fotos serão feitas na casa da participante ou em localidade oferecida pela participante. No Rio de Janeiro as fotos podem ser feitas em local oferecido por mim.

Se você tem interesse em participar do projeto, preencha o formulário clicando AQUI

Confira o calendário para saber quando poderei fotografar em cada cidade:
São Paulo: 03 a 08 de novembro
(No Rio de Janeiro as sessões podem ser combinadas em qualquer data, tirando as que estarei em outras cidades)

P.S.: O projeto é gratuito e a participação é voluntária. Para participar é preciso preencher autorização de uso de imagem disponibilizada em contato posterior. Menores de idade podem participar desde que autorizada pelos mais e em situações que não remetam à sensualidade e não contenham nudez.

Dúvidas ou inquietações, escrevam para o e-mail bruna.barlach@gmail.com ;)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Gordofobia e calor

O tipo de assunto que gera discussões épicas na internet é adoradores de frio x adoradores de calor. É incrível como a internet é um terreno fértil para as mais inúteis discussões e até um tópico "inocente" como esse acaba gerando discussões raivosas.
Confesso que já entrei nessa discussão algumas vezes ao longo dos meus anos perdidos pela internet. Mas nunca cheguei a problematizar politicamente porque a defesa do calor me causa tanta raiva até ver que todas as pessoas que eu conheço que gostam de calor são magras. Todas as pessoas que postam motivos para gostar do calor, são magras.
Não estou com isso querendo dizer que não existem pessoas gordas que gostem de calor, até porque seria um erro igualar todas as pessoas gordas, que são um grupo plural, assim como mulheres, pessoas negras e etc.
Essa semana, ao ler um post do Buzz Feed "21 situações que todo incompreendido amante do calor já enfrentou" eu tive o clique que, em primeiro lugar, fez com que eu ficasse muito muito revoltada e em segundo lugar fez com que eu levantasse reflexões mais políticas sobre meu ódio ao calor e aos amantes de calor.
Como mulher gorda, é realmente muito difícil amar o calor porque o calor é a época do ano que a gordofobia se expressa da forma mais dura. É a época que as mulheres gordas mais sofrem. E eu explico porque.
Primeiro, pessoas gordas sentem mais calor e tendem a suar mais. Esse suor que pode ser considerado ok em homens e sexy em mulheres magras (o que não é nada bom, pois é pura objetificação), em mulheres gordas é considerado nojento. Uma mulher gorda suada certamente vai ser evitada pelas pessoas nas ruas. Isso quando não temos que ouvir xingamentos que nos comparam a animais, como porcos, e por aí vai.
Da mesma forma, se andar de transporte público já não é fácil para as pessoas gordas porque ele não foi feito pensando na diversidade dos corpos, tente fazer isso no calor. Mal estar, sudorese intensa, pessoas te apontando, olhando pra você com nojo. Se você, então, não tem carro, não pode andar de táxi ou similar vai acabar evitando ao máximo sair de casa.
Se, mesmo assim, enfrentar o desafio da humilhação e sair de casa no calor, o seu destino certamente não será a praia. A não ser que você tenha comprado alguns kits extras de auto estima, visitar a praia ou a piscina sendo gorda tende a trazer mais tristeza do que prazer. Se os olhares de reprovação são constantes quando você está vestida, imagine quando usa um maiô ou quando comete o crime capital de usar um biquíni.
Encarou o desafio de ir a praia? Nem pensa em entrar no mar. A praia inteira para pra te acompanhar com os olhos quando você tira a saída de praia e acompanha seus passos até o mar. Por algum motivo, as pessoas se afastam, pensando que você tem alguma coisa contagiosa.
Ficou com fome? Melhor voltar correndo pra casa! Sabe aquele sorvete que as pessoas adoram tomar no calor? Então, ele não é permitido também pra gorda. Aliás, nem o sorvete, para não ouvir comentários desagradáveis de que é por isso que está "deste tamanho", nem um milho verde, pra evitar que alguém comente que "finalmente você está fazendo regime".
Caminhar com os amigos na rua deveria ser o direito de todos, certo? Se você está com a autoestima bombando e vestiu uma roupa de verão e saiu pra caminhar, certamente vai ter que enfrentar no dia seguinte as consequências disso, com assaduras pelo corpo.
Ah, esqueci de dizer, roupas de verão é algo que absolutamente não existem. Se você for muito insistente talvez encontre uma bermuda de cotton e olhe lá. Simplesmente não existem roupas de calor para quem usar manequim maior que 50, afinal, se a marca já se prestou a fazer roupa pra gorda, o que é raro, raríssimo (e caríssimo), é claro que ela está fazendo roupa pra você se esconder. Chamar a costureira também não adianta, já que elas não sabem fazer roupas para a sua modelagem e se encontrar uma profissional fera que consiga, bem, volta pro começo do texto pra ver o que acontece quando gordas saem às ruas no calor.

Você pode gostar de calor? Minha gente, vocês podem gostar do que quiserem. O que não pode é ficar usando seu privilégio pra sambar em cima das pessoas gordas que sofrem, efetivamente, com o tempo quente.
Não estou com isso fazendo uma defesa ao frio (ainda que eu obviamente prefira, já que posso viver minimamente melhor), já que o frio traz consigo outros problemas: como a triste realidade dos moradores de rua no tempo frio.
Então, da próxima vez que formos falar de temperaturas, atividades e gostos, não vamos esquecer que a gente vive numa sociedade atravessada por opressões, falou? Valeu ;)

Pra fechar, eu no biquíni, enfrentando a gordofobia.
Foi esse ano, em Paraty. Estava passeando com a minha irmã de barco e, bem, tudo isso aí de cima e mais um pouco eu ouvi meus amigos. Não vão me dizer que é sussa pras gordas colocar biquíni apenas porque NÃO É!
(tanto não é que depois dessa viagem minha mãe comprou muito "simpaticamente" um maiô pra mim, gordofobia? Não, imagina!)

terça-feira, 30 de setembro de 2014

The eye of the beholder

Eu estou gorda. Não, não estou, eu sou gorda, e tenho sido pelo menos 90% da minha vida. Ainda que esta não seja nenhuma novidade, quem vive na nossa sociedade (capitalista, patriarcal e MUITO gordofóbica) sabe que existe estar gorda e estar GORDA. E eu estou GORDA.

Se você não faz ideia do que eu to falando, vamos tratar de números. Hoje eu peso algo entre 125 e 130 kg. Muito provavelmente estou mais pesada do que jamais estive (talvez já tenha estado outra vez nessa faixa, mas eu estava tão deprimida que não conseguia nem cogitar me pesar).

Se eu começar a entrar em razões aqui vou escrever uma novela e meu objetivo não é (só) falar sobre mim: é falar sobre o outro.

Eu tenho uma porrada de objetivos e sonhos na vida e, incrivelmente (chorem gordofóbicos), ser magra não está entre eles. Estar bem de saúde está entre eles, mas sou escolada o bastante em saber como a gordofobia opera para ter o conhecimento de que saúde não é inversamente proporcional ao peso. Loucura, mas não é.

Há um ano e meio, dois anos atrás, antes de eu me mudar pro Rio e começar este relacionamento com o companheiro com quem vivo eu era uma gorda menos gorda. Uma gorda mais socialmente aceitável pelo diagrama da gordofobia. Numericamente, meu peso variava entre 105, 110 kg. Legendando para quem não é do universo das sanfonas, onde vivem eu e a maioria das pessoas gordas, naquela época eu usava manequim 48/50 e hoje eu uso uns 54/56 (não sei ao certo porque não acho roupas que me servem, principalmente calças, mas bora tocar a vida).

No auge do meu 1,73 se alguém aí tiver a fim de fazer os cálculos, vai ver que eu já era uma "obesa severa" e agora sou uma "obesa mórbida". Sério, acho essas palavras muito loucas. Eu to longe de ser uma pessoa severa, pelo menos na maioria dos assuntos, já mórbida eu sempre fui, viu. Até porque quero ver alguém conseguir  ser gordo nesse mundo e não ter uma visão amarga da vida, quando a primeira coisa que as crianças aprendem, e não é de hoje, é que você é o errado da escolinha.

Voltando ao diagrama da gordofobia, sendo quem eu sou hoje e estando vivendo no corpo que vivo e nesse planetinha, como conversamos lá em cima, sei que passei do limite da aceitabilidade social. Isso é: deixei de ser aquela que "é gorda, mas na balada eu comia" para ser "como você tem coragem de comer essa mina". Veja, nenhuma das duas concepções é sobre mim, as duas é sobre como eu sou vista, pior, como os homens me veem e a outras mulheres gordas.

Cá estou eu, 29 anos muito bem vividos, feminista, socialista, militante de uma porrada de coisa aí, inclusive da comunicação, vivendo meus dilemas e minhas crises pois somos ativistas E somos pessoas com dores, sentimentos, questões intrínsecas e extrínsecas e por aí vai. Eu nasci mais ou menos uma crise com perninhas, então dizer que estava eu passando por uma crise é lugar comum, mas vamos lá... estava eu passando por uma crise. E essa crise tinha/tem também a ver com meu corpo e com as minhas escolhas de vida. As questões são plurais e complexas, mas  focando friamente no que diz respeito ao corpo, isso tava me incomodando.
Me incomodando porque eu fui pra casa da minha mãe e apenas todas as mulheres da casa, minha mãe, minha tia e minha avó, ficaram apertando a maldita tecla de como eu preciso emagrecer. Em outro estado meu pai engrossando o coro. "Ah, mas é na sua saúde que estamos pensando". Minha irmã, uma ex-gorda (e a pessoa que mais tenta não reproduzir gordofobia que eu conheço) fica pisando em ovos pra conversar comigo e eu noto que tem horas em que ela acaba esbarrando nisso, ainda que com mil ressalvas a ela.
Bate no liquidificador a pressão da família, a sociedade te olhando feio, seu mal estar mental= milshake de gordofobia. Absolutamente indigesto.

Se tem algo que eu tenho certeza absoluta que faz mal pra saúde (física, mental, psicológica, espiritual, etc) é esse milshake. E quando começam a enfiar todo dia goela abaixo é claro que você não aguenta o tranco. E nem tem que aguentar, quem tem que desconstruir a gordofobia, aliás, não é você: breaking news! São os gordofóbicos!

E por que eu estou falando isso tudo, que parece tão óbvio? Porque eu notei o peso dos olhos de quem vê e o quanto a imagem que eu passo para os outros influencia a forma com que eu me vejo e como lido com o mundo quando eu estive na presença de alguém que não me olhou como uma pessoa-gorda-nojenta-etc. Que me olhou como mulher-foda-gostosa.
Antes que vocês me entendam mal, não estou aqui pra dizer que um homem adorador de gordas veio num cavalo branco e me salvou de todo mal, absolutamente não! O que eu quero é que vocês possam ver, assim como eu vi e senti, que não há nada de errado (ou certo) com meu corpo. Ou com nenhum corpo. É que estamos permanentemente sujeitas aos julgamentos dos outros e a grande maioria dos olhares é anti-gordxs!

A gordura, ela NÃO está nos olhos de quem vê, ela é real quando você é gorda (e não quando você acha que é mas não é). O que está nos olhos de quem vê é a GORDOFOBIA. Sacaram?
Quando a gente vê que o machismo é um instrumento de poder dos homens, numa sociedade patriarcal que oprime as mulheres, nenhuma pessoa esclarecida politicamente teria coragem de culpar uma mulher por ser oprimida e sofrer as consequências do machismo, não é? Da mesma forma, usando a mesma lógica (e não simetria, é diferente) qual o sentido de culpar a pessoa gorda por ser gorda se quem está errado e utilizando de um mecanismo de poder e controle são as pessoas não-gordas (e, via de regra, gordofóbicas, assim como todo homem é machista, toda pessoa não-gorda é gordofóbica!)? Inclusive, todos os argumentos médicos e etcs são construídos dentro da lógica de uma medicina que é machista e gordofóbica, então não me venha com essa. Se você é gordofóbico assuma, trabalhe suas questões, mas não venha por favor, nunca mais me dizer que é pela minha saúde!

Sei que estou sendo repetitiva, mas a ideia é ser didática, então, só pra finalizar, me acompanhem:
- gordura não é relativa, ela é real
- a gordura não está nos olhos de quem vê, a gordofobia que está
- não, não é preocupação com saúde, apontar a gordura é SEMPRE gordofobia
- não sou eu que preciso "me aceitar", são os gordofóbicos que tem desconstruir sua gordofobia

Combinado? Se tem alguma dúvida releia o post. Na dúvida é só olhar os pontos destacados.

Se precisar que eu desenhe, tá aqui, oh, desenho de uma gorda:




(Mas morbidez, ela também tem outro significado: A suavidade ou delicadeza das formas de uma figura pintada ou esculpida. Languidez. Essa morbidez, ela me representa.)