segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O labirinto do sátiro


O horizonte era de uma beleza estonteante. Longe de tudo e de todos ele vivia. Poderia se chamar de fazenda ou de outra dimensão ou de coisa nenhuma, mas não há uma pessoa sequer que não quereria estar naquele belo lugar. Parece que o Sol respeitava a beleza daquelas terras e não ousava incindir claro demais. Assim como, durante a noite, as estrelas brilhavam como fogos de artifício, como se todas elas estivessem ainda vivas, e não fossem uma ilusão.
Na verdade, ao chegar lá, ela se sentiu em casa como não se sentia há tanto tempo que pensou em ficar. Mesmo sem saber se poderia, mesmo sem saber se deveria, ela realmente quis ficar. Não que tenha sido bem recebida por ele, nem mal recebida: seu olhar era vazio, distante, não notava a sua presença. Era um olhar quase sem emoção. Diferente da guardiã da casa que pousava seus olhos tristes sobre ela num misto de esperança e compaixão. Tinha medo, medo de que ela, ao ver cair o pôr do sol fugisse e estaria a guardiã sozinha com ele.
Não que ela não o amasse. Ela o amava com o mais sublime que só as mães castas, com um certo grau de neurose e desprendimento da vida poderiam amar. Mas era tudo tão solitário e as horas que ela passava conversando com ele eram horas que se arrastavam, sempre beirando o fim do dia, quando tudo iria acontecer novamente e ela choraria em silêncio aguardando um novo amanhecer passar e com ele toda a dor, toda a dor de todos os dias.
Elas só puderam conversar quando ele finalmente pegou no sono. Uma conversa de poucas palavras, uma conversa de almas, trocando pus entre as feridas. Nada do que foi dito pode ser lembrado, porque logo a noite veio e nada do que pudesse ter sido dito a prepararia para aquela noite.
Era quase secreto seu desejo por ele, ainda que já tivesse gritado aos quatro ventos, era velado, era negado, era forte e avassalador e atravessava aqueles olhos vazios, perdidos e animalescos. Aqueles olhos sem emoção, aquela pele de viço quase pegajoso, quase seca demais. Sempre esteve claro que algo não era humano.
Deitou-se ao seu lado no chão, sem ousar de fato tocá-lo. Tocava-o levemente, mais com sua mente do que com seu corpo. Ele estava notavelmente incomodado com a sua presença, mesmo dormindo. Ela se incomodava em incomodar, mas não estar ali seria de um incomodo muito maior. Fechava os olhos e vislumbrava o horizonte infinito, a vista que teria a poucos metros, do lado de fora da casa. Com esta vista lhe vinha toda a angústia e a solidão de quem esteve preso a este lugar ao longo de uma vida. E uma vida que não se contava em anos, mas em dias e noites e ciclos.
Quando abriu os olhos ela se viu tão profundamente refletida em sua alma que se perdeu e não saberia mais o significado do tempo, não fosse o fato que a noite estava chegando e ele levantou de sobressalto. A guardiã da casa chamava por ela, tentando levá-la a um cômodo cada vez mais distante, passando por portas e mais portas que eram fechadas atrás dela, travadas em fechadoras exóticas de chumbo. Todas elas eram iguais, portas pesadas, com um visor transparente, como uma pequena janelinha. O ângulo das portas fazia com que fosse possível ver, de um lado da casa o que acontecia no outro. Ao mesmo tempo, os cômodos eram dispostos de tal maneira que você jamais poderia conseguir voltar de onde veio e era difícil de saber onde começava e onde terminava a casa. Mas ela sabia, ele estava na cozinha.
Tomada pela ansiedade e pelo desejo ela se desvencilhou da guardiã, de forma decidida e delicada. Foi mais fácil do que poderia-se imaginar, porque a essa altura a guardiã derramava lágrimas, que eram lágrimas que procuravam cumplicidade e procuravam abrir a ela seu mundo.
Correndo em círculos, como numa espiral fundante, chegou até uma longa janela de algum cômodo sem função, onde era possível ver a cozinha toda, de forma muito clara. Principalmente porque parecia emanar das paredes uma luz sem cor, nem fraca nem forte, mas que iluminava perfeitamente bem, dando espaço para a expressão legítima de cada uma das cores e texturas do sofrimento dele. Enquanto de seus olhos caiam secas lágrimas quentes demais para escorrerem, rasgava sua camisa azul, não em desespero, nem em raiva, mas como um ritual. Paralisada, observando, logo ela pode perceber porque rasgava as roupas quando começou, com o mesmo desapego, mas muito mais dor, a rasgar sua fronte. Do vão entre uma parte e outra da pele não saiu sangue, mas seus ossos começaram uma estranha transformação, tornando-se chifres, pequenos, redondos. Absolutamente doloridos, era claro. E todo seu corpo se moldou para aceitar aquela mudança e passou a existir para além daquele lugar no espaço, era hora uma coisa, hora outra, com o canto dos olhos ela podia ouvir  um cavalo dentro daquele corpo, assim como podia sentir o aroma de um céu almiscarado quase ensurdecedor.
Como ele não estava onde parecia estar ele passava pelas portas destravando cada um dos mecanismos de chumbo como se nunca houvessem sido fechados. Da mesma forma, parecia querer ficar exatamente no lugar que estava. E parte dele ficou, como parte dele foi. Ou talvez as sequência de acontecimentos tenha sido complicada demais, sobre-humana demais para que ela compreendesse ou sequer para que conseguisse contar.
Ela se deitou com ele, que de certa forma encolhia-se, buscando negar sua aparência e ser o seu ser. Ao mesmo tempo que estava em posição fetal, portava-se como um garanhão viril. E corria em direção à pequena floresta que ficava na parte ocidental da propriedade. E ele estava nu e ela a desejava e teria feito de seu corpo e do corpo dele um grande corpo em movimento, não fosse a guardiã sussurrar, em desalentada, o risco de se deitar com ele. Não eram sussurros de palavra e ela se contorceu fugindo, com uma túnica imaculada, buscando-o por inteiro. Para o oeste.
O grande salão do nascer do Sol a aguardava. E era imenso como o tempo, feito de mosaicos de todas as cores do Sol ao longo do dia. E era tarde demais porque o Sol nascia e ele não estava lá. E as mulheres choravam e temiam o pior. Ter se perdido era ainda o menor dos perigos quando repousava em fúria o potencial da destruição dos sentidos de todos os caminhos que colocasse seus pés.
Mas ele viria e nada poderia prepará-la para a volta. Não conseguia compreender aquele ovo-casúlo que mudava de forma a cada piscada, do mais orgânico ao mais inorgânico. Era ovo e era caixa, era caixa e era caixa e era caixa. Era claro, ele repousava, ali, preso. Quase sufocando enquanto tentava com as próprias unhas romper a membrana que o separava da mais externa de suas cascas. Ela correu, mas não podia sair do lugar. Segurava um martelo e queria livrá-lo do sofrimento. Portava uma faca em seu ventre afiada como o vento invernal. Mas era dele o sofrimento e ela jamais se moveria para além de sua mente.
Quando a casca se rompeu, em meio ao sangue, vísceras de criação e água, raiava o primeiro dos raios de Sol do dia. E ele estava novamente deitado, escondendo-se da luz como quem veio ao mundo neste instante. Vestia-se de azul. Um azul fulminante. Voltava à vida de óculos e parecia demasiadamente humano.  E ela desejava seu corpo e não queria partir. Mas já não estava mais lá e sim no horizonte, infinito, em outra de suas inifinicidades.