quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Essência dos casais

Eu tentava desesperadamente convencê-lo a acordar. Essa cena se repetia todos os dias, menos naqueles poucos em que a situação se invertia e era ele a tentar me convencer de que a batalha contra o repouso - e o silêncio - deveria ser travada.
Se nos uníamos em amor, também no unia um certo desencanto pelo dia a dia. Em mim mais claro, mais vivido, mais conformado e menos conformado. Nele de uma forma quase rebelde - sua recusa permanente em despertar, fosse o que fosse que o esperasse do lado de fora da cama era um grito de inconformismo. Eu tinha que usar de violência, de violência física, verbal, até de violência emocional. Era rebelde porque não havia a clareza do que lhe causava essa repulsa. Meu ir e vir e meu devir havia me ensinado uma meia dúzia de coisas, entre elas como não morrer, ou como tentar não morrer na maior parte do tempo. Não que fosse um alento: a verdade é que morrer era meu pensamento inicial a cada e todos os dias que não tinha permissão para mergulhar indefinidamente no descanso silencioso do sono. Não houve um dia sequer que eu possa me lembrar que eu não tenha desejado a morte ao amanhecer, mas acontece que os anos se passam, a adolescência passa, os sonhos de morte deixam de ser pesadelos para se tornar mais alguém com quem divido a cama. Na cama de casal - tão nossa - nunca faltou espaço para mim, para ele e para os sonhos de morte matinais. Eu nunca havia experimentado essa sensação tão confortável de não faltar espaço na cama, mesmo em dias que eu dormira em camas muito maiores. Em parte porque nossa proximidade nunca é incômoda, em outra parte porque ainda que não tão consciente ele partilhe esses mesmo sonho de morte e vivamos uma confortável relação a três.
Dividir um segredo sombrio tem sido a essência poética de tantos e tantos casais na literatura, no cinema. De forma velada são os segredos sombrios sobre os quais nunca falamos que nos une, ainda que o lubrificante seja o mesmo que corre entre as nossas pernas. Sempre falamos sobre tudo, mas certos acordos são feitos em silêncio e se perpetuam por terem seu silêncio respeitado. O tal do diálogo, permitir ao outro que fale, que respire, tudo isso não substitui o poder de respeitar meia dúzia de silêncios consensuais. Era como se nossa pele fosse feita de um material sensível às opressões.
Enquanto tantos falavam delas as opressões em nossa carne formavam marcas e mais marcas numa dor dilacerante. Parte de mim sempre soube que essa dor é comum a maior parte da humanidade (se não a toda ela). Oprimidos e comprimidos numa realidade que não nos cabe, embalados à vácuo pelo sistema. Coformandos e conformados, todos faces de uma realidade de objetificação.
Ser humano e se sentir uma mercadoria produzida numa fábrica suja - aquela mesma que pode causar alergia, pois também processa amendoim e nozes. Essa cama partilhada - meio cama, meio redoma - era uma ilusão confortável parte do tempo, na outra parte vivíamos felizes: eu, ele e o sonho da morte. Mais ou menos em equilíbrio.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

... 2013

As vozes ecoavam pela janela enquanto em minha mente ressoavam versos de brilho, luto e desapego. Um desapego doído, quase dilacerante do corte da última membrana que me prendia a algo que fui e jamais seria. Enquanto as palavras hesitavam em fluir carecendo da lubrificação correta (que de certo modo já havia partido, então era praticamente uma luta inútil) brilhos e brocados enchiam meus olhos. Não ousaria contar quantos dias, mas eram poucos, bem poucos, bem menos de uma semana para o acontecimento.
Um pouco engraçado seria pensar o quanto nos prendemos a certos ritos, por mais pós-ritualísticos que nos pretendamos. Você finge que com você é diferente, mas com essa margem tão pequena de dias (juro, não ousaria jamais contar) os prazos e prosas se entrelaçavam ao luto e à lógica que ainda reiterava o quão sem sentido seria este sofrimento depois de mais de um mês vivendo juntos.
Consciente e plena da escolha e da felicidade que era estar ao seu lado meus maus hábitos (principalmente aquele que me prende aos sofrimentos por escolha) pareciam querer sobreviver a qualquer custo num cenário onde eles eram impossíveis. Sabe impossíveis? Impossíveis, aquelas velhas dores dos abusos e cortes e a dependência e o peso das piores escolhas. Não o sofrimento, porque este é muito muito particular, mas bem o mal, um peito quente e acolhedor, seu perolado e a certeza de que no grito e no silêncio minha mão encontraria as mãos que escolhi segurar (e que me escolheram segurar).
A febre (uma febricolazinha) persistia queimando-me as pernas e o torso. Eu caminhava pela casa (ora me arrastando, ora saltitando como baquetas de tambor) quase sempre nua-semi-nua. De seios de fora para refrescar a febre. Cobria metade do corpo, descobria metade do corpo. Se encarar o problema de peito aberto, ou fugir do problema num isolamento completo. Corria, circundava as verdade, circulava as tarefas.
A última membrana resistia, resistiria, como um pedaço de carne que não conseguimos deixar perfeito (entenda como  quiser) e ao mesmo tempo se transmutava com projeções de todos os tipos. Ela era em si o luto, era a luta do luto em não se concretizar, era o medo do luto simbólico virar real. Era a latência de uma dor que todos carregamos mas que poucos ousam encarar de frente. (acho que eu também tenho medo da morte)



Impulsos virtuais

Eu sempre dou reload no captcha, faço o caminho com menos subidas, não entro em discussões alhures e escolho a resposta mais fácil. Em tudo que não importa realmente, eu sempre escolho o caminho mais fácil. Esse, eu desconfio, seja o caminho da sabedoria. Sempre que escolhemos o mais difícil, sempre que aceitamos qualquer desafio, sempre que queremos provar pra nós mesmos que podemos fazer algo, sendo que este algo não é algo que necessitamos ou que sequer nos dá prazer, perdemos tempo, energia, vigor e a nossa existência limitada com nada.
Desconfio que deve ser difícil saber quais batalhas devem ser travadas. Profundamente difícil. E é por isso que vejo tanta gente se empenhando em coisa nenhum que o valha e tão poucas se empenhando e tudo aquilo que há de valoroso de fato. Pra elas, não pra mim, não se trata de juízo de valor, se trata de saber medir os passos, de entender quando o seu desejo, duas paixões e sua inércia. O mundo é tão maluco que eles acabam parecendo a mesma coisa e essa não distinção é uma prisão pior que as grades.

Penso sobre a liberdade, enquanto empenho sistematicamente em não terminar uma série de textos que ainda terei que entregar hoje. Escrevo aqui, como registro. Registro de um tempo, de um espaço, de uma realidade mental que é fugaz. Se me dói ver as pessoas se debaterem em suas prisões existenciais, me dói mais ainda saber que nada posso fazer por elas.

Minhas palavras encontram paredes, muros de pedra, de ilusão e ignorância e voltam letras perdidas. Sou babel e sou a Biblioteca de Alexandria.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

2013

... em 2023

ficarei em êxtase ao lembrar que em junho de 2013, quando a nossa revolução começou a ser construída eu estava ensandecida! Entre os dias de luta se intercalava um doce formigamento no estômago, de quem deixou a segurança do seu mundo por amor, de novo. Era junho de 2013, milhares (ou milhões?) estavam nas ruas. Nós estávamos nas ruas e nos casando. Da forma mais linda e libertária e revolucionária que poderíamos (mal sabíamos que inventaríamos a cada dia uma nova revolução em nosso amor, sempre avançando rumo ao socialismo e à liberdade).

lembrarei daquela noite, há 10 anos atrás, quando completamos seis meses da nossa primeira pequena (gigantesca revolução) quando suas palavras me moveram para outro horizonte e nós demos o primeiro e derradeiro beijo. Naquela noite, a que completamos seis meses, eu estava deitada nua na cama, com a mão sobre o seio esquerdo, o direito deslizando sobre a cama, enquanto eu observava seu corpo nu, lindo, uma canção de prazer e luta. Do lado direito do seu torso repousava uma resistente gota de porra, aquela que eu não pude sorver (lembrarei também do gosto exato que ela tinha, diferente de sempre, era salgada). E de como deixei que você dormisse com ela, como se aquela ínfima gota fosse o registro em seu corpo do nosso amor.

sentirei aquelas mesmas dores no corpo que se seguiam a cada ato e do conforto pleno que existia em seus braços. Um conforto tão pleno que, tanto quanto me acalentava, me prendia a esta sensação. Me acostumava mal.

(...)

sexta-feira, 8 de março de 2013

Mulherzinhas (I)

Titica, de pequetita e de titica de galinha
esse negócio de dizer da gente, mulher, no diminutivo é uma baita do afronta
a gente nasce princesinha e vai virando uma gracinha
e de gracinha em gracinha
é que nos fazem coitadinhas.


Eu, de mim, quero é ser ão.

Pezinhos, boquinha, mãozinha, manequinzinho, tudo miudinho e garboso
esmagando nossos cerebrozinhos
para que nossos olhinhos não vejam
e nossas mãos não toquem
a verdade que emana.

Eu, por nós, quero ser ã.

Cabe em um abraço, precisa de um, incompletas e frágeis bonequinhas
de tanto e tanto ouvir essas historinhas
a gente vai se convencendo
até que se fica tão pequena
mas tão, tão miudinha
que qualquer peteleco e chute
esmaga nossa ternurinha.

Nós, por toda gente, precisamos ser.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

eu gosto de você bêbado

eu gosto de você bêbado, gosto de você desbocado, gosto de você tarado, gosto de você sem tantas travas que o mundo te colocou.

Gosto de você livre. Gosto de você múltiplo. Gosto de você molhado. 

(gosto de você perto) (gosto de você dentro) (gosto de você gozo)

Autobiográficas



Lembro-me de ser criança e de sentir-me muito semelhante ao que sinto hoje em diversos aspectos, como quando a minha irmã brincava de mágica. Ela pedia que eu fechasse os olhos para fazer alguma coisa sumir. Fosse um brinquedo, um doce, ou a lua, minha irmã tinha o poder de fazer qualquer coisa sumir, mas para a mágica dar certo eu tinha que fechar os olhos sempre.
Nunca desconfiei o que para qualquer um seria óbvio, que ela escondia as coisas quando eu fechava os olhos. Porque eu nunca vi motivos para desconfiar das pessoas.
É claro que hoje, tantos e tantos anos depois, a minha irmã não brinca mais comigo de mágica. Mas vez por outra ela aproveita da minha completa incapacidade de perceber mentiras e conta alguma coisa mirabolante, completamente fora do que qualquer um acredita, por brincadeira. É claro que com os anos eu aprendi que ela não está dizendo a verdade, mas apenas pelo padrão, tanto que sempre acredito nos primeiros segundos.
Não culpo a minha irmã, deve ser mesmo divertido conseguir enganar alguém sempre da mesma forma.  Mas eis que chega um momento na vida que tudo isso cansa. Cansa ser enganada, cansa ter a sua boa vontade usurpada. Ainda que haja o cansaço, nada muda.

(12/11/12)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Quem precisa de zumbis?



Soube a pouco que minha vizinha diariamente dobra meu capacho para que não encoste no dela. Não que meu capacho tenha feito algo de errado, não que ele não seja um bom capacho, é apenas que minha vizinha é louca.
E quando eu digo que minha vizinha é louca, é sem medo de que isso pareça algo ruim, nem que eu esteja aqui gastando meu tempo para falar mal da minha vizinha. É para começar um assunto sério sobre a nossa sociedade.
Mês passado minha vizinha roubou nossa cesta básica, recebendo-a em sua casa e assinando com um nome falso. O entregador não suspeitou de nada, porque até bem pouco tempo atrás ela sempre recebia nossa cesta básica e tantas outras coisas. Até que começamos a fazer parte da conspiração paranoica da vizinha. De alguma forma ela acredita que tem pessoas no prédio unidas para acabar com a moral dela (como se a moral fosse algo externo, algo que o outro nos coloca).
Mas, como eu disse, nada disso é sobre a minha vizinha, nem sobre o coitado do meu capacho nem sobre a falta que a cesta básica nos fez (ou não fez, no caso). É sobre cada um de nós.
Com cerca de 50 e vários anos, A. (codinome vizinha) é uma mulher que vive sozinha nesse bairro descolado e boêmio de São Paulo. Ela é professora, acho que de português, na rede pública, motivo pelo qual conseguiu um financiamento fantástico para conseguir comprar um apartamento (bons tempos aqueles de outrora que havia ao menos alguma vantagem financeira em ser professor da rede). Certamente que a compra do apartamento trouxe a ela um certo status social, ainda que hoje o bairro esteja para além de supervalorizado, ele sempre foi um dos queridinhos da intelectualidade paulistana. O resto da história é fictícia, ou pelo menos em partes. A. teve um, alguns, vários homens em sua vida, sem ter entrado num relacionamento sério com nenhum deles. Se hoje nos parece relativamente aceitável que uma mulher viva sozinha, more bem e seja financeiramente independente, a verdade é que na geração dela isso nunca foi visto com bons olhos. Por isso a maioria dos homens, encantados também pela sua beleza e seu corpo digno de atriz da globo da sua geração, aproveitavam de sua companhia (e ela das dele, claro) por um dia, uma noite, uma semana, cinco ciclos lunares, não sei, e fim de papo.
Um espectro rondava sua vida: professora não era profissão de esperar marido? Como ousara ela ser uma professora independente?
E assim os anos se seguiram, deixando para trás muito de sua vitalidade. Este espectro nunca andara sozinho, para garantir que a solidão não fosse completa ela se manteve fiel a dietas, a sessões de jejum, academia, corridas, novos tratamentos de beleza a cada ano e muito, muito pouco sono.
As cobranças da família sobre a suas escolhas de vida se tornaram tão frequentes que, com o passar do ano, se afastara de todos.
Como as mazelas da vida de docente se encerram mais cedo, a aposentadoria chegou logo, com ela um pouco de descanso, um pouco de tempo para si, para diversão, para viver a vida que julgara não ter vivido até então.
Mas o silêncio ecoava tão alto pela casa que com ele surgiram as vozes. As vozes que ouvira pela frente, pelas costas, pelos lados, durante toda a sua vida. Se antes eram as pessoas que a julgavam, hoje as paredes também empunhavam martelos e tinham olhos que de soslaio faziam-na se sentir cada vez mais errada.
Ora, se a parede da casa e a cafeteira teciam comentários sobre a sua vida e viviam para julgá-la, quem dirá os vizinhos? É claro que eles estavam todos a julgá-la cotidianamente e condená-la por suas escolhas de vida, pela sua postura, pelas suas roupas, pelo seu corpo, pela sua incapacidade administrativa quando fora síndica, pela sua velhice (que não podia mais ser escondida), pela hora que ela acordava, por quando ia dormir, pelo quanto e com quem falava no telefone. Vizinhos! Eles escolheram viver nesse prédio somente para poder tecer esses comentários sobre a sua vida.
Nem oi, nem bom dia. Não há motivo de confraternização com o inimigo. A não ser em reuniões de condomínio, mas reunião de condomínio não se trata de confraternização: é uma zona de batalha. Lá sobravam gritos e farpas, para qualquer um, para todos, ousando ou não lhe dirigir a palavra. Afinal de contas, mesmo que estivessem em silêncio, ela sabia que o tempo todo eles estavam falando dela.
Para evitar qualquer risco de contaminação pelas palavras cruéis, então, era melhor evitar que seu capacho entrasse em contato com o meu...

*ilustra este post o trabalho de Guilherme Pinkalsky (http://www.behance.net/gpinkalsky), meu amigo e grande artista.