domingo, 24 de fevereiro de 2013

eu gosto de você bêbado

eu gosto de você bêbado, gosto de você desbocado, gosto de você tarado, gosto de você sem tantas travas que o mundo te colocou.

Gosto de você livre. Gosto de você múltiplo. Gosto de você molhado. 

(gosto de você perto) (gosto de você dentro) (gosto de você gozo)

Autobiográficas



Lembro-me de ser criança e de sentir-me muito semelhante ao que sinto hoje em diversos aspectos, como quando a minha irmã brincava de mágica. Ela pedia que eu fechasse os olhos para fazer alguma coisa sumir. Fosse um brinquedo, um doce, ou a lua, minha irmã tinha o poder de fazer qualquer coisa sumir, mas para a mágica dar certo eu tinha que fechar os olhos sempre.
Nunca desconfiei o que para qualquer um seria óbvio, que ela escondia as coisas quando eu fechava os olhos. Porque eu nunca vi motivos para desconfiar das pessoas.
É claro que hoje, tantos e tantos anos depois, a minha irmã não brinca mais comigo de mágica. Mas vez por outra ela aproveita da minha completa incapacidade de perceber mentiras e conta alguma coisa mirabolante, completamente fora do que qualquer um acredita, por brincadeira. É claro que com os anos eu aprendi que ela não está dizendo a verdade, mas apenas pelo padrão, tanto que sempre acredito nos primeiros segundos.
Não culpo a minha irmã, deve ser mesmo divertido conseguir enganar alguém sempre da mesma forma.  Mas eis que chega um momento na vida que tudo isso cansa. Cansa ser enganada, cansa ter a sua boa vontade usurpada. Ainda que haja o cansaço, nada muda.

(12/11/12)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Quem precisa de zumbis?



Soube a pouco que minha vizinha diariamente dobra meu capacho para que não encoste no dela. Não que meu capacho tenha feito algo de errado, não que ele não seja um bom capacho, é apenas que minha vizinha é louca.
E quando eu digo que minha vizinha é louca, é sem medo de que isso pareça algo ruim, nem que eu esteja aqui gastando meu tempo para falar mal da minha vizinha. É para começar um assunto sério sobre a nossa sociedade.
Mês passado minha vizinha roubou nossa cesta básica, recebendo-a em sua casa e assinando com um nome falso. O entregador não suspeitou de nada, porque até bem pouco tempo atrás ela sempre recebia nossa cesta básica e tantas outras coisas. Até que começamos a fazer parte da conspiração paranoica da vizinha. De alguma forma ela acredita que tem pessoas no prédio unidas para acabar com a moral dela (como se a moral fosse algo externo, algo que o outro nos coloca).
Mas, como eu disse, nada disso é sobre a minha vizinha, nem sobre o coitado do meu capacho nem sobre a falta que a cesta básica nos fez (ou não fez, no caso). É sobre cada um de nós.
Com cerca de 50 e vários anos, A. (codinome vizinha) é uma mulher que vive sozinha nesse bairro descolado e boêmio de São Paulo. Ela é professora, acho que de português, na rede pública, motivo pelo qual conseguiu um financiamento fantástico para conseguir comprar um apartamento (bons tempos aqueles de outrora que havia ao menos alguma vantagem financeira em ser professor da rede). Certamente que a compra do apartamento trouxe a ela um certo status social, ainda que hoje o bairro esteja para além de supervalorizado, ele sempre foi um dos queridinhos da intelectualidade paulistana. O resto da história é fictícia, ou pelo menos em partes. A. teve um, alguns, vários homens em sua vida, sem ter entrado num relacionamento sério com nenhum deles. Se hoje nos parece relativamente aceitável que uma mulher viva sozinha, more bem e seja financeiramente independente, a verdade é que na geração dela isso nunca foi visto com bons olhos. Por isso a maioria dos homens, encantados também pela sua beleza e seu corpo digno de atriz da globo da sua geração, aproveitavam de sua companhia (e ela das dele, claro) por um dia, uma noite, uma semana, cinco ciclos lunares, não sei, e fim de papo.
Um espectro rondava sua vida: professora não era profissão de esperar marido? Como ousara ela ser uma professora independente?
E assim os anos se seguiram, deixando para trás muito de sua vitalidade. Este espectro nunca andara sozinho, para garantir que a solidão não fosse completa ela se manteve fiel a dietas, a sessões de jejum, academia, corridas, novos tratamentos de beleza a cada ano e muito, muito pouco sono.
As cobranças da família sobre a suas escolhas de vida se tornaram tão frequentes que, com o passar do ano, se afastara de todos.
Como as mazelas da vida de docente se encerram mais cedo, a aposentadoria chegou logo, com ela um pouco de descanso, um pouco de tempo para si, para diversão, para viver a vida que julgara não ter vivido até então.
Mas o silêncio ecoava tão alto pela casa que com ele surgiram as vozes. As vozes que ouvira pela frente, pelas costas, pelos lados, durante toda a sua vida. Se antes eram as pessoas que a julgavam, hoje as paredes também empunhavam martelos e tinham olhos que de soslaio faziam-na se sentir cada vez mais errada.
Ora, se a parede da casa e a cafeteira teciam comentários sobre a sua vida e viviam para julgá-la, quem dirá os vizinhos? É claro que eles estavam todos a julgá-la cotidianamente e condená-la por suas escolhas de vida, pela sua postura, pelas suas roupas, pelo seu corpo, pela sua incapacidade administrativa quando fora síndica, pela sua velhice (que não podia mais ser escondida), pela hora que ela acordava, por quando ia dormir, pelo quanto e com quem falava no telefone. Vizinhos! Eles escolheram viver nesse prédio somente para poder tecer esses comentários sobre a sua vida.
Nem oi, nem bom dia. Não há motivo de confraternização com o inimigo. A não ser em reuniões de condomínio, mas reunião de condomínio não se trata de confraternização: é uma zona de batalha. Lá sobravam gritos e farpas, para qualquer um, para todos, ousando ou não lhe dirigir a palavra. Afinal de contas, mesmo que estivessem em silêncio, ela sabia que o tempo todo eles estavam falando dela.
Para evitar qualquer risco de contaminação pelas palavras cruéis, então, era melhor evitar que seu capacho entrasse em contato com o meu...

*ilustra este post o trabalho de Guilherme Pinkalsky (http://www.behance.net/gpinkalsky), meu amigo e grande artista.