terça-feira, 30 de setembro de 2014

The eye of the beholder

Eu estou gorda. Não, não estou, eu sou gorda, e tenho sido pelo menos 90% da minha vida. Ainda que esta não seja nenhuma novidade, quem vive na nossa sociedade (capitalista, patriarcal e MUITO gordofóbica) sabe que existe estar gorda e estar GORDA. E eu estou GORDA.

Se você não faz ideia do que eu to falando, vamos tratar de números. Hoje eu peso algo entre 125 e 130 kg. Muito provavelmente estou mais pesada do que jamais estive (talvez já tenha estado outra vez nessa faixa, mas eu estava tão deprimida que não conseguia nem cogitar me pesar).

Se eu começar a entrar em razões aqui vou escrever uma novela e meu objetivo não é (só) falar sobre mim: é falar sobre o outro.

Eu tenho uma porrada de objetivos e sonhos na vida e, incrivelmente (chorem gordofóbicos), ser magra não está entre eles. Estar bem de saúde está entre eles, mas sou escolada o bastante em saber como a gordofobia opera para ter o conhecimento de que saúde não é inversamente proporcional ao peso. Loucura, mas não é.

Há um ano e meio, dois anos atrás, antes de eu me mudar pro Rio e começar este relacionamento com o companheiro com quem vivo eu era uma gorda menos gorda. Uma gorda mais socialmente aceitável pelo diagrama da gordofobia. Numericamente, meu peso variava entre 105, 110 kg. Legendando para quem não é do universo das sanfonas, onde vivem eu e a maioria das pessoas gordas, naquela época eu usava manequim 48/50 e hoje eu uso uns 54/56 (não sei ao certo porque não acho roupas que me servem, principalmente calças, mas bora tocar a vida).

No auge do meu 1,73 se alguém aí tiver a fim de fazer os cálculos, vai ver que eu já era uma "obesa severa" e agora sou uma "obesa mórbida". Sério, acho essas palavras muito loucas. Eu to longe de ser uma pessoa severa, pelo menos na maioria dos assuntos, já mórbida eu sempre fui, viu. Até porque quero ver alguém conseguir  ser gordo nesse mundo e não ter uma visão amarga da vida, quando a primeira coisa que as crianças aprendem, e não é de hoje, é que você é o errado da escolinha.

Voltando ao diagrama da gordofobia, sendo quem eu sou hoje e estando vivendo no corpo que vivo e nesse planetinha, como conversamos lá em cima, sei que passei do limite da aceitabilidade social. Isso é: deixei de ser aquela que "é gorda, mas na balada eu comia" para ser "como você tem coragem de comer essa mina". Veja, nenhuma das duas concepções é sobre mim, as duas é sobre como eu sou vista, pior, como os homens me veem e a outras mulheres gordas.

Cá estou eu, 29 anos muito bem vividos, feminista, socialista, militante de uma porrada de coisa aí, inclusive da comunicação, vivendo meus dilemas e minhas crises pois somos ativistas E somos pessoas com dores, sentimentos, questões intrínsecas e extrínsecas e por aí vai. Eu nasci mais ou menos uma crise com perninhas, então dizer que estava eu passando por uma crise é lugar comum, mas vamos lá... estava eu passando por uma crise. E essa crise tinha/tem também a ver com meu corpo e com as minhas escolhas de vida. As questões são plurais e complexas, mas  focando friamente no que diz respeito ao corpo, isso tava me incomodando.
Me incomodando porque eu fui pra casa da minha mãe e apenas todas as mulheres da casa, minha mãe, minha tia e minha avó, ficaram apertando a maldita tecla de como eu preciso emagrecer. Em outro estado meu pai engrossando o coro. "Ah, mas é na sua saúde que estamos pensando". Minha irmã, uma ex-gorda (e a pessoa que mais tenta não reproduzir gordofobia que eu conheço) fica pisando em ovos pra conversar comigo e eu noto que tem horas em que ela acaba esbarrando nisso, ainda que com mil ressalvas a ela.
Bate no liquidificador a pressão da família, a sociedade te olhando feio, seu mal estar mental= milshake de gordofobia. Absolutamente indigesto.

Se tem algo que eu tenho certeza absoluta que faz mal pra saúde (física, mental, psicológica, espiritual, etc) é esse milshake. E quando começam a enfiar todo dia goela abaixo é claro que você não aguenta o tranco. E nem tem que aguentar, quem tem que desconstruir a gordofobia, aliás, não é você: breaking news! São os gordofóbicos!

E por que eu estou falando isso tudo, que parece tão óbvio? Porque eu notei o peso dos olhos de quem vê e o quanto a imagem que eu passo para os outros influencia a forma com que eu me vejo e como lido com o mundo quando eu estive na presença de alguém que não me olhou como uma pessoa-gorda-nojenta-etc. Que me olhou como mulher-foda-gostosa.
Antes que vocês me entendam mal, não estou aqui pra dizer que um homem adorador de gordas veio num cavalo branco e me salvou de todo mal, absolutamente não! O que eu quero é que vocês possam ver, assim como eu vi e senti, que não há nada de errado (ou certo) com meu corpo. Ou com nenhum corpo. É que estamos permanentemente sujeitas aos julgamentos dos outros e a grande maioria dos olhares é anti-gordxs!

A gordura, ela NÃO está nos olhos de quem vê, ela é real quando você é gorda (e não quando você acha que é mas não é). O que está nos olhos de quem vê é a GORDOFOBIA. Sacaram?
Quando a gente vê que o machismo é um instrumento de poder dos homens, numa sociedade patriarcal que oprime as mulheres, nenhuma pessoa esclarecida politicamente teria coragem de culpar uma mulher por ser oprimida e sofrer as consequências do machismo, não é? Da mesma forma, usando a mesma lógica (e não simetria, é diferente) qual o sentido de culpar a pessoa gorda por ser gorda se quem está errado e utilizando de um mecanismo de poder e controle são as pessoas não-gordas (e, via de regra, gordofóbicas, assim como todo homem é machista, toda pessoa não-gorda é gordofóbica!)? Inclusive, todos os argumentos médicos e etcs são construídos dentro da lógica de uma medicina que é machista e gordofóbica, então não me venha com essa. Se você é gordofóbico assuma, trabalhe suas questões, mas não venha por favor, nunca mais me dizer que é pela minha saúde!

Sei que estou sendo repetitiva, mas a ideia é ser didática, então, só pra finalizar, me acompanhem:
- gordura não é relativa, ela é real
- a gordura não está nos olhos de quem vê, a gordofobia que está
- não, não é preocupação com saúde, apontar a gordura é SEMPRE gordofobia
- não sou eu que preciso "me aceitar", são os gordofóbicos que tem desconstruir sua gordofobia

Combinado? Se tem alguma dúvida releia o post. Na dúvida é só olhar os pontos destacados.

Se precisar que eu desenhe, tá aqui, oh, desenho de uma gorda:




(Mas morbidez, ela também tem outro significado: A suavidade ou delicadeza das formas de uma figura pintada ou esculpida. Languidez. Essa morbidez, ela me representa.)

De terminar, ou quem determina

Terminâncias e determinâncias não caminham juntas. Sempre estive cercada pelas determinâncias, mas nasci liberta das terminâncias. Nada me terminou. Sempre fugi dos términos, vezes como o vento que corre entre os desfiladeiros: tão longe deles que nem senti suas garras roçarem minha pele; outras como o que passa pelas frestas da janela: tendo minha pele dilacerada pela fuga.