sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Dos prazeres e da danação

Faço parte de uma maioria: das pessoas sexuais. Isso quer dizer que não só gosto de sexo, como gosto muito e que sexo é uma parte bem importante da minha vida. E quando eu falo sexo eu não to só falando papai e mamãe não (aliás, que merda de termo horrível): eu gosto de uma grande variedade de práticas sexuais heterodoxas, fetichistas, não convencionais e várias até mal vistas por grande parte da sociedade.
Faço parte também de um grande grupo oprimido conhecido por mulheres. Sem querer entrar em todos os meandros do que isso significa porque existe todo o feminismo pra explicar isso, isso quer dizer também que são furtados a mim direitos como o prazer, a liberdade, a expressão e também o de auto-reconhecimento como ser humano. Sim, porque historicamente nós mulheres e nossa (não)identidade se construiu não negação do ser humano. Seguindo a dicotomia basal, mulher não é homem, se homem é cidadão, mulher é não-cidadão. Se homem é livre, mulher é prisioneira. Se homem é possuidor, mulher é posse. Se homem é sujeito de prazer, mulheres são objetos. E eu poderia estabelecer mais milhares de relações dessas, mas acredito que essas sejam suficientes para ilustrar o que estou tentando discutir aqui.

Certo, logo de cara vocês poderiam encontrar uma contradição clara no meu texto que invalidaria todo o resto, como posso eu me colocar ao mesmo tempo como ser sexual e como mulher, sendo que estou dizendo que às mulheres é vedado o direito de serem (serem pessoas)? A resposta é simples, ainda que seja infinitamente complexa: porque tamos na luta pra desconstruir isso.

Que ótimo! Estamos desconstruindo isso então automaticamente eu estou livre de sofrer opressão nas minhas relações afetivas, sexuais e amorosas? Óbvio que não!!! O patriarcado é um sistema que incide sobre todos e a dinâmica das relações sociais na sociedade machista, construída sobre o patriarcado é de opressão às mulheres sempre. Não é a algumas, não é às vezes. É pra todas e é sempre. Vamos todos explodir o mundo e começar de novo, então? De preferência, não (não que não seja uma boa ideia). Vamos ser agentes ativos desse processo de desconstrução, mas sempre consciente que isso não evita que as mulheres continuem a ser oprimidas e os homens continuem a ser opressores.

Vamos colocar em termos práticos? Vamos, por favor, sei que é preciso.
Situação 1:
Digamos que eu inicie um diálogo com um homem de nome Sr. X. o Sr. X é um homem (por acaso tb é cis e ht) e ele, como eu, curte BDSM. Eu Sr. X entramos num "jogo de sedução". Estou super interessada no Sr. X e ele parece também interessado em mim. Sr. X. sabe que vivo com meu companheiro e que temos uma relação não monogâmica, mas que ainda assim, dividimos a casa e a vida cotidiana. Marco de sair com Sr. X, no dia um incidente em casa me impede de ir. Sr. X compreende o caso mas a partir dali passa a insinuar que meu companheiro tem uma relação abusiva comigo e começa e transformar isso em parte de sua "brincadeira" sexual. Isso me ofende profundamente pelo amor e respeito que tenho pelo meu companheiro, mas eu estou envolvida com o Sr. X e aceito. Aceito porque eu aprendi, como mulher a aceitar um bando de merda quando se trata de relacionamentos. Aceito porque tenho desejo pelo Sr. X. Enfim. Aceito.

Situação 2:
Conheci num bar o J.A. O cara é super bacana, nosso papo tem tudo a ver, acabamos ficando e transando no mesmo dia, o sexo é incrível, a gente super se entende na cama, me sinto bem com ele. Continuamos a nos falar quase todos os dias. Por encontros e desencontros da vida acabamos por demorar a nos encontrar de novo. Quando nos encontramos o papo continua maravilhoso. Nos beijamos, os beijos são incríveis, o clima fica super sexual e vamos pro motel. Chegando no motel me sinto altamente incomodada e digo que não quero continuar. Me esquivo e tento sair da situação. J.A. conversa pacientemente comigo, voltamos a nos beijar, eu digo que não quero passar disso e acabo cedendo à pressão e transamos. Por mais que ele continue a me tratar super bem e ser um querido saio daquele dia com uma sensação super estranha. Mas continuamos a nos falar como sempre.

Situação 3:
Vivo com F. Por conta do meu trabalho eu viajo muito e isso faz com que, eventualmente, eu e F. não estejamos juntos. F. é um cara muito legal mesmo, a gente tem uma ótima sinergia no dia a dia, na cama, na rua, na chuva, enfim, nosso relacionamento é tudo de ótimo. Numa de minhas viagens estou conversando pela internet com F, tendo uma conversa amorzinho e F. começa a entrar em assuntos relacionados a sexo. Eu desconverso porque não estou no clima (e/ou porque não gosto de falar disso na internet). F. continua na conversa amorzinho mas sempre tentando puxar a conversar para o sexo. Em meio a conversa F. manda uma mensagem dizendo "olha só como vc me deixa" e uma foto de seu pau duro. Eu mando um emoticon de risadinha qualquer e falo qualquer coisa, envergonhada e desconcertada porque eu não estava nem a fim e nem no clima. Digo que estou com sono/ocupada/qqr desculpa e saio da internet. Volto de viagem e transamos loucamente e continuamos a nos amar e viver felizes, eu e F.

Teste simples. O que essas três situações tem em comum?
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São três situações de abuso! E, apesar de não serem situações de fato reais, já passei pelas três (E por taaaantas outras) na vida. Nos três casos estamos falando de uma mulher que gosta de faz sexo. E nos três casos estamos falando de pessoas com as quais ela mantinha relações consensuais. E nos três casos estamos falando de abuso. Pode isso, Arnaldo? Super pode!

Quando estamos numa relação consensual com alguém isso não impede que exista abuso. É chover no molhado, mas a grande maioria de estupros é praticada por namorados, maridos e companheiros das vítimas. Dizer que só porque a pessoa mantém uma relação consensual não há abuso é o mesmo que dizer que essas vítimas não existem. Que marido não estupra. Ou seja, que a partir do momento que você "assinou o contrato" de consenso você está obrigada a aceitar qualquer situação, inclusive o abuso, coação, estupro, assédio (e um longo etc) sem reclamar. Ah, e se não é uma relação consensual padrão também pode ter abuso. Se é um "acordo" não-monogâmico também acontece abuso. Se é um "contrato" BDSM também pode ter abuso. Ou, resumindo, em qualquer relação pode haver abuso. Principalmente em relações entre homens e mulheres (principalmente mas não somente).

Ah, mas ninguém denúncia. Ah, mas como que você vai provar. Ah, mas pode ser mentira. Ah, mas _____ (preencha aqui com qualquer desculpa para o machismo). Legalismos a parte (e não sou contra eles), no mundo real o buraco é mais embaixo. Vá perguntar pras mulheres que foram vítimas de abuso como é tranquilo denunciar. Super fácil. Porque, afinal, existe "delegacia da mulher" então a lei está ao nosso lado. E a delegacia da mulher, assim como os relacionamentos consensuais, está numa bolha fora da realidade onde o machismo não existe. Só que não. Só que nem um pouco. Só que absolutamente o contrário.

Eu, Bruna, não sei como vamos e se vamos um dia ter recursos legais para se lidar com o abuso de fato e nem esse é o centro da minha preocupação. No dia em que a maioria das pessoas perceber que essas e tantas outras situações são abusivas e que as mulheres são MESMO oprimidas (as sexuais, as assexuais, as demissexuais e qualquer outra relação que tenham com sexo) creio que o caminho legal será facilmente trilhado. Mas enquanto denúncias de abuso forem acobertadas por um suposto consentimento, como se este impedisse o abuso, não haverá lei que nos proteja nem estratégia de denúncia que esteja a nosso favor.