segunda-feira, 30 de abril de 2012

Road stories e processo de trabalho


Tirando meu primeiro livro nunca publicado, com seis anos, que era sobre um macaco, e uma coisa ou outra que foge a regra, em momentos de êxtase, todo meu trabalho poderia ser enquadrado em "road stories". Essa afirmação pode levar à falsa ideia que tudo que eu escrevo é sobre histórias que se passam na estrada de forma literal, mas não é bem por aí que a coisa se desenrola.
Lembro-me de sonhar, ainda muito pequena, com estradas outonais, daquelas que só existem no hemisfério norte. Árvores plantadas como que formando uma cerca que contorna a estrada tornando qualquer coisa, para além destes caminhos, um mistério eterno, impenetrável. Eram sempre sonhos de paz, de paz e liberdade. Ainda que não houvesse partida ou destino, a estrada mais escura era recanto de um pulsar forte, cardíaco. Este pulsar íntimo e visceral que foi meu estímulo fundamental a escrever.

Duas coisas me fizeram querer escrever sobre isso hoje. Primeira delas é que estou lendo mais uma road storie. É engraçado que elas me atraem mesmo sem eu saber. Compro um livro porque gosto do autor, na maioria das vezes compro livros no escuro. Saber a história me é tão desestimulante que me impede de ler vários clássicos. E este era mais um road book, como o outro que eu tenho no banheiro, um livro de contos, cheio de road stories malucas e fascinantes. Assim como quase qualquer livro que você vá encontrar empilhado em minha estante ou pelo meu quarto-atelier.
O segundo motivo foi que, conversando com um amigo alguns dias atrás, ele também um (grande) artista, disse uma coisa que eu sempre soube mas nunca tinha formulado. Que não existem road movies ruins. Qualquer história fraca, quando se desenrola em volta de uma viagem, já se torna uma história minimamente interessante.
De certa forma: a estrada é o único lugar de (des)conforto que liga a todos nós. Em todas as tradições que já tive notícia as principais histórias se dão em torno de viagens, de buscas, de jornadas. Pensem um pouco e vejam como isso é verdade. Para além da literatura e do cinema contemporâneo, são milhares de anos de road stories.
Difícil pensar sobre isso sem cair em um discurso muito piegas de que as viagens dos filmes e livros e músicas e histórias representam nossa viagem para dentro. Isso é mais que óbvio. Nosso desafio é conseguir, para além deste primeiro olhar, conseguir ver mais do que asfalto, árvores, partida e destino.
Que é uma viagem para dentro, isso já sabemos. Resta saber o quão profundamente você consegue manejar esse barco. E como estão seus sentidos para ver, tocar, experimentar cada sabor, cada buraco. E cair de boca em cada parte deste experimento. Porque a grande viagem, e cada uma das partes da grande viagem é uma grande experiência científica empírica do viver. Porém não se pode ficar só no empirismo, a não ser que você queira fazer um road movie de terror batido. Além de fazer a viagem é necessário olhar para ela, relatar o que foi experiênciado. Relatar e produzir experiência, seja ela literária, visual ou o que quer que seja. Sensibilizar suportes desta experiência, fazê-los pulsar como o coração na estrada.
É possível que ao olhar para uma parte do meu trabalho você não veja uma road storie. É possível que você veja road stories demais. Isso porque a história, a história toda é uma só. Com momentos onde desafiamos as leis de trânsito e outros que nos recolhemos, silenciosamente, a uma parada de beira de estrada, saboreando um rançoso espetinho de frango enquanto olhamos para o nada, vidrados. Enquanto tudo continua correr na estrada. E estamos parados. E continuamos a pulsar estrada em cada uma de nossas respirações.


(não existem livros além do grande livro que poderá ser visto no fim de tudo. não existe um objeto artístico além do que será desvelado com o fim da vida.)




domingo, 29 de abril de 2012

Amanheceres e feriados

Caminhando pelas ruas é fácil perceber que moro num bairro deslocado da realidade paulistana: caminha-se "seguro" na madrugada, as ruas são quase sempre limpas, árvores nos presenteiam com frutas, pássaros nos despertam em seu coro de diferentes vozes. Não entendo nada de pássaros e é notável que grande parte dos dias eles me irritam e me acordam antes do que eu gostaria, assim como hoje. Mas hoje não importa, porque hoje é feriado.
Um vizinho escuta uma rádio que toca incessantemente óperas. Mal me lembro da existência de rádios, não poderia imaginar que haveria tal rádio. E não podemos dizer que ela tenha sido apresentada da melhor forma possível. Não há nada no mundo que deva ser escutado nessa altura, nada mesmo.
Lembro-me dos sabores dos feriados, de muitos deles. Tenho uma terrível memória, mas uma capacidade de recordar minhas lembranças sensoriais incrível, quase impossível de descrever. Meus sentidos se comunicam e causam reações em todo o meu corpo de forma muito mais eficiente do que qualquer questão emotiva ou racional. Somos de uma emotividade doente, eu, você, todos nós.
Amanhecer frio, feriado. Óperas e passarinhos. E rádios, quem diria: rádios! Cada um destes elementos capaz de despertar diferentes memórias sensoriais. Alguns deles trazem consigo camadas e diferentes tipos da tal da memória, como no dia que descobri que ópera era coisa do "populacho", que pessoas com gosto musical refinado não gostavam de ópera. Fico aqui me lembrando disso e pensando quanta discriminação poderia haver em tal fala.
Não tentarei de forma alguma qualificar ou desqualificar a ópera do ponto de vista técnico. Cada vez que tenho que olhar para uma música desta forma fico perdida e, na verdade, acontece mesmo de eu precisar fazê-lo. Mas pensando sobre a fala deste, que era um amigo bem mais velho que eu na época, um senhor da intelectualidade paulistana, parece-me que os admiradores de ópera eram vistos como os funkeiros ou sertanejeiros ou qualquer um desses segmentos.
Vá hoje em dia a uma ópera e veja quantas pessoas do "populacho" estarão presentes. Chuto que nenhuma (por mais que eu mesma - que sou do populacho- não vá a uma ópera há anos). Porque hoje em dia ópera é um universo elitizado. Ou melhor, o pensamento médio acredita que a ópera é coisa "chique".
Esperemos 100 anos (se o mundo não for à forra antes) e grandes salões de orquestra tocarão Mr. Catra com dançarinas seminuas para a futura elite. Porque o que é o popular é que tende a sobreviver. Se hoje nos parece estranho e ruim porque é contemporâneo, em 20 anos será bem mais aprazível. Em 100 será canônico.
Essa é a verdade sobre a música, sobre todas as manifestações artísticas e culturais. Esse é, inclusive, o grande desafio da arte. Mas este desafio, este desafio não foi feito para ser discutido em feriados. Volto ao meu livro. Ficção. Porque feriados são das ficções, dos passarinhos e dos baldes de pipoca.

sábado, 28 de abril de 2012

Para dizer que eu falei das cotas

Opressão é um bicho de sete cabeças mesmo com o qual a gente não sabe lidar, por mais que queira, simplesmente porque, indiferentemente de como você lide com isso, o quanto você lute contra as opressões elas não vão mudar de verdade dentro da estrutura na qual vivemos, então tudo que é assunto sobre opressões acaba por criar um grande problema e discussões acaloradas.
Na verdade houve um tempo que eu estava mais por dentro de como fazer essas discussões, seguia uma boa cartilha para elas. Hoje em dia o que eu digo é um pouco de lembrança dessa cartilha e um pouco de um observar sensível do mundo. E, de verdade, acredito que estamos em um buraco terrível quando o assunto é opressão.
Isso porque todo o discurso que é utilizado a favor das opressões (ou contra quem é contra as opressões) parece tão lógico e tão certo que qualquer coisa que você use para desconstruir este discurso será uma lástima. Porque não aprendemos (ah! a generalização confortável) a relacionar conceitos.
Ficaria até fácil eu dizer que é tudo culpa da educação, porque é. Mas não daria assunto para post dizer isso sem uma tentativa honesta de defender o meu ponto, de porque é necessário aprender a relacionar conceitos urgentemente, correndo o risco de cairmos todos no abismão da barbárie (Marx, querido, é meu jeitinho).
Vamos falar de cotas então. Ok, não é difícil de entender que temos uma dívida histórica com os negros no Brasil (não só no Brasil, mas já que é sobre nossas cotas que estamos falando...) por conta da escravidão. Acho difícil discordarmos disso.
A questão do mito da "democracia racial" também é muito difundida hoje em dia. Não é preciso ser muito genial para perceber que sim, há uma diferença de tratamento com os negros. Não percebe? Sente em um confortável café em um ponto da cidade onde passam muitas pessoas de todos os tipos de formas e cores e observe. Tenho certeza absolutíssima que ao ver um negro passando (se ele estiver "mal vestido", então, nem se fale) as pessoas olham diferente e até desviam. Sei que não estou falando nenhuma novidade. Mas guardem cada ponto para entendermos a questão de relação de conceitos, confiem em mim.
Há tempos que é sabido que não há diferença genética entre diferentes grupos humanos para que eles se configurem como raça, felizmente. Eu, como judia, fico muito feliz que tenhamos clareza disso para evitar qualquer ideia genial de raça pura. Isso não quer dizer que não tenhamos diferentes grupos dentro da população. Chamando de povo, raça, etnia, nas ciências sociais estas classificações encontram conceitos diferentes das que existem na biologia genética, cada ciência com suas categorias, é sempre bom sabermos disso.
Mais dois panoramas até chegarmos ao ápice da discussão. Primeiro é em relação às políticas afirmativas e outras políticas paliativas. São paliativas sim, mas paliativo não é desnecessário, é parte do processo. De um processo de mudança.
Em um passado longínquo, quando cursei serviço social, essa questão era complicadíssima para nós, a ala revolucionária do curso, lidar. Porque assistente social é a profissão mais reacionária que existe, por definição, mas esse é outro assunto. A questão é que quem passa fome não vai esperar que o capitalismo seja derrubado para comer (ainda que tenham certos grupos políticos que acreditam que é necessário que os trabalhadores cheguem ao fundo do poço porque só assim haverá revolução). Seria completamente desumano.
Da mesma forma, para que pensemos a questão do negro de forma mais robusta é necessário que tenhamos em nossas universidades negros pensando essa questão, porque é sempre, sempre diferente quando o próprio ponto da questão pensa sobre si. Precisamos de negros na universidade até mesmo para que, quando em condição de igualdade de acesso ao conhecimentos que outras "raças" (ou etnias, ou grupos sociais ou o que você quiser chamar), eles digam que as cotas não são necessárias.
Em último lugar (antes de relacionarmos tudo isso) temos que olhar para o mundo em que vivemos. É necessário sim, para a manutenção do sistema, que existam pessoas que aceitam receber muito menos do que outras. Essas pessoas são negras, em sua maioria. Negros e mulheres. E as mulheres negras, então, recebem tão menos que um homem branco, na mesma posição de trabalho, que é até vergonhoso.

Agora chegamos ao ponto onde tudo se encontra (também chamado de análise de conjuntura). Negro ganha menos. Certo. Ganha menos porque historicamente foi criada uma condição na qual os negros não tinha acesso à educação (não só educação, habitação, saúde e todas as outras coisinhas necessárias para se viver bem e conseguir desenvolver as suas potencialidades). Por terem se fodido terrivelmente durante a escravidão e ainda muito mais com o fim dela quando foram marginalizados. O que por si só já acaba por gerar um estigma.
Bonito dizer que no Brasil a pobreza não tem cor, mas é só olhar o senso para desmontar facilmente este discurso mas, para além disso, a opressão tem cor e os opressores também. E um país, para se desenvolver, no mundo capitalista, precisava que houvessem esses "seres" à margem. Juntando isso aos hábitos ainda profundamente escravistas que temos (só ver como é relação patroa empregada doméstica), tudo fica muito lindo, muito confortável. Para quem é branco, claro.
A questão da educação é central no Brasil, é, sem dúvidas. Quem é que não sabe que é preciso investir em educação? Mas investir em que educação? Qual o conceito de educação que está colocado para nós?
Não tenhamos ilusões, as escolas públicas, em sua maioria, servem para formar trabalhadores para o comércio, atendentes de telemarketing e operários para as fábricas. Ela não prepara as pessoas para a Universidade porque não há interesse algum que esses estudantes compreendam isso que eu estou lhes dizendo.
Mais ainda, a educação das escolas particulares que prepara "para o vestibular" reforça todo esse discurso de forma muito sistemática. Ah! A meritocracia tão estimada!
O que é ser melhor que alguém, o que é merecer estar em uma universidade e qualidade? Estude para vencer. Seja melhor que seu coleguinha, pois você está disputando com ele. E toda essa retórica que só serve para manter a ideologia dominante. E continuar oprimindo os oprimidos. E tudo com a desculpa que é uma disputa legítima e que os melhores irão vencer. Melhor que o que, eu lhes pergunto, melhores que quem? E nos cursinhos pré-vestibular acham tudo isso engraçado, sábios mestres, os melhores perpetuadores do status quo.

Convivo com professores o tempo todo. Eu mesma sou uma aprendiz de educadora. Vejo que os estudantes de classe média das boas escolas são incapazes de responder perguntas que pedem que sejam relacionados dois conceitos. Quiçá relacionar meia dúzia deles. Análise de conjuntura então, nem pensar. E são esses que serão treinados e vão passar o vestibular (ou estudar em um conceituada universidade particular que quem pode pagar recebe um ótimo diploma). Para dizer que cotas são absurdas, que abalam a estrutura do ensino. Que geram mais discriminação. A discriminação está aí e, agora, será inegável. Mas ela já estava e, nesse sistema em que vivemos, sempre estará. Ao menos deixemos que sejam os negros a terem em suas mãos o poder de discutir isso. De dar aos seus filhos condições de vida melhores. Para que olhem para trás com orgulho e para frente com braços estendidos. Não é o fim da luta. É uma nova ferramenta de luta.


Sopetões e passeatas

O universo é uma grande disputa ideológica. Se não o universo, ao menos o planeta Terra, mas desconfio que esta questão seja universal, ao tempo que, na verdade, tanto faz.
Disputas ideológicas aqui e ali, gastamos nosso tempo com elas. Todos nós, ocupantes de qualquer um dos graus da espiralada consciência política. Discussões no facebook, no twitter, no ponto de ônibus, na mesa do jantar (no sofá do jantar, no caso de minha casa). Gastamos um tempo da porra com isso. Para que, no fim, quase tudo se perca no vazio... tempos fluídos esse, fluídos e cortantes.
Claro que tem momentos que nos preocupamos mais em entrar nestas disputas, outros menos. Não vejo nem o mais nem o menos como bom: o mais nos deixa loucos e o menos é alienante demais. Foi daí que tenho tentado conseguir me manter no mais ou menos. Ou em um "mais", mas um "mais" diluído. Um "mais" paciente. Um "mais" mais tranquilo.
As polêmicas pululam por todas as partes e sempre acabo querendo dizer mais do que cabe em um tweet, em um mural de facebook. E menos do que caberia numa pesquisa acadêmica. Daí que havia esse blog. E eu gosto tanto do nome desse blog. Mas ele estava inútil, esquecido.
Esquecido porque acabei reviravoltando a vida tanto que não me encontrei mais nele. Esquecido, mas guardado com carinho. Não esquecido, guardadinho. De alguma forma na minha cabeça de formação lógica demais e até bolchevique demais, coisas não se misturam: ou escrevia sobre o universo literário, ou escrevia sobre política, ou escrevia sobre as artes visuais, ou escrevia sobre sei lá que caramba que estivesse povoando meus poros em determinado momento. Estantes que não existem. E eu sou toda ressignificações.
E hoje, nesse agora (imaginário, mas quem liga) que sou tantas coisas em uma só, pura multiplicidade, não há porque não juntar tudo e ser a palavrista estética do mundo (salve Beuys), artista da sociedade. E escrever, escrever, escrever.