sábado, 28 de abril de 2012

Para dizer que eu falei das cotas

Opressão é um bicho de sete cabeças mesmo com o qual a gente não sabe lidar, por mais que queira, simplesmente porque, indiferentemente de como você lide com isso, o quanto você lute contra as opressões elas não vão mudar de verdade dentro da estrutura na qual vivemos, então tudo que é assunto sobre opressões acaba por criar um grande problema e discussões acaloradas.
Na verdade houve um tempo que eu estava mais por dentro de como fazer essas discussões, seguia uma boa cartilha para elas. Hoje em dia o que eu digo é um pouco de lembrança dessa cartilha e um pouco de um observar sensível do mundo. E, de verdade, acredito que estamos em um buraco terrível quando o assunto é opressão.
Isso porque todo o discurso que é utilizado a favor das opressões (ou contra quem é contra as opressões) parece tão lógico e tão certo que qualquer coisa que você use para desconstruir este discurso será uma lástima. Porque não aprendemos (ah! a generalização confortável) a relacionar conceitos.
Ficaria até fácil eu dizer que é tudo culpa da educação, porque é. Mas não daria assunto para post dizer isso sem uma tentativa honesta de defender o meu ponto, de porque é necessário aprender a relacionar conceitos urgentemente, correndo o risco de cairmos todos no abismão da barbárie (Marx, querido, é meu jeitinho).
Vamos falar de cotas então. Ok, não é difícil de entender que temos uma dívida histórica com os negros no Brasil (não só no Brasil, mas já que é sobre nossas cotas que estamos falando...) por conta da escravidão. Acho difícil discordarmos disso.
A questão do mito da "democracia racial" também é muito difundida hoje em dia. Não é preciso ser muito genial para perceber que sim, há uma diferença de tratamento com os negros. Não percebe? Sente em um confortável café em um ponto da cidade onde passam muitas pessoas de todos os tipos de formas e cores e observe. Tenho certeza absolutíssima que ao ver um negro passando (se ele estiver "mal vestido", então, nem se fale) as pessoas olham diferente e até desviam. Sei que não estou falando nenhuma novidade. Mas guardem cada ponto para entendermos a questão de relação de conceitos, confiem em mim.
Há tempos que é sabido que não há diferença genética entre diferentes grupos humanos para que eles se configurem como raça, felizmente. Eu, como judia, fico muito feliz que tenhamos clareza disso para evitar qualquer ideia genial de raça pura. Isso não quer dizer que não tenhamos diferentes grupos dentro da população. Chamando de povo, raça, etnia, nas ciências sociais estas classificações encontram conceitos diferentes das que existem na biologia genética, cada ciência com suas categorias, é sempre bom sabermos disso.
Mais dois panoramas até chegarmos ao ápice da discussão. Primeiro é em relação às políticas afirmativas e outras políticas paliativas. São paliativas sim, mas paliativo não é desnecessário, é parte do processo. De um processo de mudança.
Em um passado longínquo, quando cursei serviço social, essa questão era complicadíssima para nós, a ala revolucionária do curso, lidar. Porque assistente social é a profissão mais reacionária que existe, por definição, mas esse é outro assunto. A questão é que quem passa fome não vai esperar que o capitalismo seja derrubado para comer (ainda que tenham certos grupos políticos que acreditam que é necessário que os trabalhadores cheguem ao fundo do poço porque só assim haverá revolução). Seria completamente desumano.
Da mesma forma, para que pensemos a questão do negro de forma mais robusta é necessário que tenhamos em nossas universidades negros pensando essa questão, porque é sempre, sempre diferente quando o próprio ponto da questão pensa sobre si. Precisamos de negros na universidade até mesmo para que, quando em condição de igualdade de acesso ao conhecimentos que outras "raças" (ou etnias, ou grupos sociais ou o que você quiser chamar), eles digam que as cotas não são necessárias.
Em último lugar (antes de relacionarmos tudo isso) temos que olhar para o mundo em que vivemos. É necessário sim, para a manutenção do sistema, que existam pessoas que aceitam receber muito menos do que outras. Essas pessoas são negras, em sua maioria. Negros e mulheres. E as mulheres negras, então, recebem tão menos que um homem branco, na mesma posição de trabalho, que é até vergonhoso.

Agora chegamos ao ponto onde tudo se encontra (também chamado de análise de conjuntura). Negro ganha menos. Certo. Ganha menos porque historicamente foi criada uma condição na qual os negros não tinha acesso à educação (não só educação, habitação, saúde e todas as outras coisinhas necessárias para se viver bem e conseguir desenvolver as suas potencialidades). Por terem se fodido terrivelmente durante a escravidão e ainda muito mais com o fim dela quando foram marginalizados. O que por si só já acaba por gerar um estigma.
Bonito dizer que no Brasil a pobreza não tem cor, mas é só olhar o senso para desmontar facilmente este discurso mas, para além disso, a opressão tem cor e os opressores também. E um país, para se desenvolver, no mundo capitalista, precisava que houvessem esses "seres" à margem. Juntando isso aos hábitos ainda profundamente escravistas que temos (só ver como é relação patroa empregada doméstica), tudo fica muito lindo, muito confortável. Para quem é branco, claro.
A questão da educação é central no Brasil, é, sem dúvidas. Quem é que não sabe que é preciso investir em educação? Mas investir em que educação? Qual o conceito de educação que está colocado para nós?
Não tenhamos ilusões, as escolas públicas, em sua maioria, servem para formar trabalhadores para o comércio, atendentes de telemarketing e operários para as fábricas. Ela não prepara as pessoas para a Universidade porque não há interesse algum que esses estudantes compreendam isso que eu estou lhes dizendo.
Mais ainda, a educação das escolas particulares que prepara "para o vestibular" reforça todo esse discurso de forma muito sistemática. Ah! A meritocracia tão estimada!
O que é ser melhor que alguém, o que é merecer estar em uma universidade e qualidade? Estude para vencer. Seja melhor que seu coleguinha, pois você está disputando com ele. E toda essa retórica que só serve para manter a ideologia dominante. E continuar oprimindo os oprimidos. E tudo com a desculpa que é uma disputa legítima e que os melhores irão vencer. Melhor que o que, eu lhes pergunto, melhores que quem? E nos cursinhos pré-vestibular acham tudo isso engraçado, sábios mestres, os melhores perpetuadores do status quo.

Convivo com professores o tempo todo. Eu mesma sou uma aprendiz de educadora. Vejo que os estudantes de classe média das boas escolas são incapazes de responder perguntas que pedem que sejam relacionados dois conceitos. Quiçá relacionar meia dúzia deles. Análise de conjuntura então, nem pensar. E são esses que serão treinados e vão passar o vestibular (ou estudar em um conceituada universidade particular que quem pode pagar recebe um ótimo diploma). Para dizer que cotas são absurdas, que abalam a estrutura do ensino. Que geram mais discriminação. A discriminação está aí e, agora, será inegável. Mas ela já estava e, nesse sistema em que vivemos, sempre estará. Ao menos deixemos que sejam os negros a terem em suas mãos o poder de discutir isso. De dar aos seus filhos condições de vida melhores. Para que olhem para trás com orgulho e para frente com braços estendidos. Não é o fim da luta. É uma nova ferramenta de luta.


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